Álvaro Ribeiro Regiani

DO MITO DO “BOM SELVAGEM” AO DO “ÍNDIO SUSTENTÁVEL”: O MULTICULTURALISMO NO DISCURSO JORNALÍSTICO

  

Introdução

 

No presente ensaio, analisou-se um artigo de opinião da “O Mito do bom selvagem” (1990) da professora e ensaísta Maria José de Queiroz publicado no jornal O Estado de São Paulo sobre as representações da “bondade natural” e da “natureza ecológica” dos povos indígenas. O artigo é exemplar, pois reflete a defesa de posições frente às mudanças da opinião pública nacional e internacional sobre a ecologia e os direitos dos povos indígenas. A importância da contextualização deste artigo demonstra como noções e conceitos do multiculturalismo foram empregados em torno de discursividades e práticas racistas.

 

Na imprensa mais alinhada ao conservadorismo, a universalização do racionalismo transformou os valores da cultura europeia como um único padrão de referência para a representação de “outras” culturas. Por conta desse olhar enviesado sobre o outro, foi que se cristalizou classificações sobre indivíduos e culturas por meio de referências temporais e espaciais eurocentradas. Foi comum classificações de povos indígenas circunscritas no território brasileiro como estando na “idade da pedra” ainda em reportagens e propagandas no Brasil contemporâneo.

 

De forma análoga ao que Silvia Rivera Cusicanqui analisou sobre a substituição do termo “índio” por “camponês”, visou-se interpretar como a reificação da imagem do “índio sustentável” foi constituída nas folhas do jornal e assim perceber como as “palavras foram usadas para encobrir a realização em vez de designá-lo, o que permitiu ignorar e apagar do debate público, das ciências sociais e da imprensa, a persistência do problema colonial e do racismo” (RIVERA CUSICANQUI, 2015, p. 89). 

 

Neste sentido, a reencenação e a reutilização cotidiana do racismo contra os povos indígenas afeta negativamente a forma como estes vivem, mas também a constituição de sentidos históricos dos não-indígenas. Como bem indicaram Tânia Mara Pedroso Müller e Paulo Antônio Barbosa Ferreira: “As ideologias construídas ao longo da história legitimadoras do racismo estão expressas nas linguagens, que em atos comunicativos estão atravessadas por discursos. Portanto, não se pode ser neutro ou isento” (MÜLLER; FERREIRA, 2018, p. 5. Grifos nossos).

 

Neste sentido, o objetivo deste ensaio é analisar criticamente a circularidade das ideias e o contexto de produção de narrativas em torno do multiculturalismo e do racismo por meio do artigo de Maria José de Queiroz.

 

Do mito do “bom selvagem” ao do “bom ecologista”

           

Escrito em 13 de janeiro de 1990 no suplemento literário “Cultura” do jornal O Estado de São Paulo pela professora e ensaísta Maria José de Queiroz, o artigo “O Mito do bom selvagem”, criticava a “harmoniosa integração com a natureza” dos indígenas por meio do argumento que isto seria a renovação do mito da “bondade natural”. Como consta na publicação a “reelaboração do mito do bom selvagem” e a associação dos modos de preservação ambiental de indígenas estariam na “moda”. Pois, alguns literatos recuperaram a bondade natural do “limbo a que o condenara o Ocidente civilizado” e a prova disso foi o prestígio internacional dado ao “nosso Raoni” (QUEIROZ, 1990, p. 4).

 

Para Queiroz a 'harmonia' com a natureza foi uma atribuição dada aos indígenas por alguns ativistas, ambientalistas e jornalistas, exemplificada pela divulgação da “exótica peregrinação” da liderança Caiapó Raoni Metuktire em companhia do cantor Sting pela Europa. O ativismo de Raoni contra a política ambiental brasileira atraiu a atenção internacional, mas também a desconfiança de grupos de interesse nacionais. Segundo a ensaísta, “Raoni tem despertado tanto ou maior admiração que os seus antepassados em visita ao rei Charles IX [Carlos IX] (1550-1574), em Ruão [ou Rouen na França], em 1562” (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

Ao elaborar um paralelo da viagem de Raoni com os eventos do século XVI, a autora objetivou revelar os verdadeiros interesses da ‘peregrinação’ e do “resgate” da bondade natural por meio de um uso político-ideológico do passado. Na segunda metade do século XVI, como explicou José Alexandrino de Souza Filho, o projeto imperialista francês nas Américas constitui-se ideologicamente em oposição à colonização luso-espanhola, por meio da estratégia da “política de aproximação”. Os objetivos foram criar parcerias comerciais com os ameríndios e, posteriormente, torná-los súditos de um “rei humanitário e esclarecido”. O êxito desse modelo de colonização ocorreria por meio da “evangelização dos nativos, da introdução da agricultura e do desenvolvimento da sociedade civil” (SOUZA FILHO, 2008, p. 223). 

 

De forma diferente ao que os ibéricos fizeram, mas similar em seus fins, o mito do bom selvagem foi uma figuração que beneficiou o projeto colonial francês. Quando o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1582) escreveu seus “Ensaios” (1580), já havia na cidade de Rouen a circulação de xilogravuras e miniaturas que celebravam a representação do bom selvagem e a aliança entre ameríndios e franceses. As possíveis manipulações que indígenas “brasileiros” poderiam sofrer por “estrangeiros” exemplificam os temores de grupos de interesse brasileiros em 1990.

 

Para esses grupos, às queixas de indígenas na mídia internacional para ativistas de organizações não governamentais e missionários estrangeiros feria a soberania nacional, sendo parte do estratagema das potências imperialistas na apropriação dos recursos naturais. Por meio de supostas manipulações das lideranças indígenas, suas denúncias desmoralizaram a credibilidade de grupos de interesse privado e da ação governamental para resolver esses conflitos. Conforme explicou Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno:

 

“As ameaças internacionais que pesavam sobre a Amazônia, com base em estereótipos tais como o pulmão da humanidade, patrimônio da humanidade, reserva ecológica e outros, difundidos por Organizações Não-Governamentais e ordens religiosas que arrancavam pronunciamentos de chefes de Estado das grandes potências” (CERVO; BUENO, 2002, p. 465).

 

Mesmo com os impasses formados pelas denúncias dos povos indígenas e de ativistas nas mídias internacionais, o impacto no Brasil foi minimizado. Na cobertura feita pelo jornalismo brasileiro, foi comum reportagens que valorizaram a engenharia social e de como os conflitos coloniais foram superados com a formação da identidade nacional. Algumas matérias legitimaram a violência e o racismo contra os povos indígenas por meio de narrativas que defendiam a colonização ibérica como a melhor possível.

 

No artigo “O Mito do bom selvagem”, o projeto colonial francês teria sido “retocado no século XVIII” por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e François René de Chateaubriand (1768-1848) para ser apresentado à “Europa romântica”. Mas, embora a “imagem nobre e altiva” do indígena tenha influenciado temas e escritas de J. Fenimore Cooper (1789-1851), José de Alencar (1829-1877), Gonçalves Dias (1823-1864), León Mera (1832-1894) e Juan Zorrilla de San Martin (1855-1931) a “realidade descrita” dos “índios” “continuariam à margem da sociedade cristã, piedosamente empenhada na salvação de sua alma” (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

Mesmo sem comentar os aspectos da ilusão indianista em sua substituição do passado escravista por uma alegoria de pureza “indígena” em terras americanas, Maria José de Queiroz optou por valorizar o iberismo como um sentido histórico. Para a ensaísta, houve um “momento único” da colonização ibérica “instado pelo clamor de Las Casas e de outros religiosos, [que] dispôs-se o poderoso imperador [Carlos V da Espanha] a interromper a Conquista até que decidisse sua legitimidade” e “houve quem o visse inclinado a deixar o Peru aos peruanos” (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

Entre 1550-1551, na cidade espanhola de Valladolid, foi realizado um tribunal de doutos católicos em torno da “alma” ameríndia e da “guerra justa”. Carlos V (1550-1558) ordenou à Domingo Soto (1494-1560), Melchor Cano (1509-1560), Bartolomé de Miranda (1503-1557) e Bernardino de Arévalo (1492-1533) darem fim na “verdadeira guerra civil” entre “aqueles que consideravam justas as guerras contra os índios e aqueles que a eles se opunham com tenacidade”, conforme descrito no artigo do Estadão. De um lado havia o dominicano Bartolomeu de Las Casas (1484-1566) que defendia a existência da alma e intercedeu pelo fim da invasão através da conversão pacífica dos indígenas à cristandade. Do outro, o jurista Juan de Sepúlveda (1494-1573) argumentou que a “bestialidade” dos “índios” justificava a guerra e a colonização espanhola. Mas, segundo a ensaísta, neste suposto interregno da invasão pela deliberação racional sobre a “guerra justa”, não contou com a presença do vitorioso da querela de Valladolid: Francisco de Vitória (1483-1546) (QUEIROZ, 1990, p. 4).

 

Francisco de Vitória havia morrido antes das sessões em Valladolid, quando escreveu Relecciones de Indis (1539), ele tratou de indicar que “os espanhóis tem direito de percorrer aquelas províncias e de permanecer ali, sem que possam ser proibidos pelos bárbaros [indígenas], mas sem dano algum deles” porque “a Igreja pode libertar todos os servos cristãos que servem aos infiéis”. E foi enfático sobre a natureza dos indígenas: “Deve notar-se que, sendo os ditos bárbaros por natureza medrosos, e muitas vezes imbecis e néscios, mesmo quando os espanhóis querem dissipar seu temor e assegurá-los de suas intenções pacíficas” (VITÓRIA, 1992, pp. 501-508).

 

Ainda em seus argumentos, Francisco de Vitória reduzia a capacidade racional dos povos ameríndios à condição de “dementes”, “crianças”, “idiotas”, “feras” e “bestas”, por fim concluía que era impossível estes se governarem. Mesmo com essas impressões negativas, o jus inter gentes (“direitos das gentes”) serviu como princípio para o direito internacional e foi utilizado para tutelar povos indígenas tal qual Vitória entendia “ser entregue ao governo dos mais inteligentes” (VITÒRIA, 1992, p.510). 

 

A subalternização dos indígenas por meio do direito internacional moderno e da tutela espanhola por meio da suposta universalidade racional serviram, sobretudo, para suavizar os horrores da invasão e estabelecer uma narrativa de que após o tribunal em Valladolid todos saíram ganhando com a colonização. A exaltação de Francisco de Vitória feita por Maria José de Queiroz indicava para a existência de um encontro, mutuamente, benéfico, pois o espanhol "questionou o direito da Espanha (e do seu Imperador) ao domínio da América” (QUEIROZ, 1990, p. 4) 

 

Entretanto, nos argumentos de Queiroz não houve uma interpretação crítica sobre qual condição jurídica os ameríndios foram submetidos e, principalmente, se eles realmente precisavam de um tribunal para definir a existência de sua alma ou da legitimidade de seu governo. 

 

Em certo sentido, as estratégias de dominação por meio de uma suposta racionalidade, neutra e impessoal da jus inter gentes foi historicamente aceita por vários escritores e ensaístas sem uma crítica aos efeitos dessa discursividade. Foi comum em narrativas que dialogavam com o multiculturalismo descrever a existência de conflitos entre povos “nativos” e “exógenos” para uma síntese histórica no qual as diferenças tornaram-se algo do passado.

 

Na matéria feita para o Estadão, havia uma linha multicultural na interpretação histórica. Na estrutura textual, ocorreu uma denúncia contra o “genocídio, a escravidão, o álcool e a fome”. Mas, por fim, foi feita uma síntese desse embate para justificar um suposto avanço na história: A “fabulosa e muito heróica empresa civilizatória do Novo Mundo” (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

Uma crítica pertinente a essa forma de analisar a história é a ausência das resistências e da falta de abordar a complexidade das culturas dos povos indígenas. Transparece que os embates foram narrados como algo inerente às diferenças culturais e que estas demonstravam a superioridade e a inferioridade dos envolvidos. Em síntese, ocorreu a neutralização dos efeitos político-sociais da ocidentalização para justificar que a colonização foi o único caminho possível. Por isso, foi lançada a suspeita sobre a versão ecológica da bondade natural:

 

“Consultem-se, para comprová-lo, o ensaio Des Cannibales, de Montaigne, e o recente noticiário da imprensa. Os livros sobre os índios, seu habitat e seus costumes tornaram-se best sellers. Multiplicam-se filmes e videocassetes cujo principal interesse consiste em divulgar-lhes a harmoniosa integração com a natureza. E tudo leva a crer que assistimos, neste fim de século, à reelaboração do mito do bom selvagem. O que nos afastará, uma vez mais, da consideração dos verdadeiros problemas do nosso aborígine e da sua sobrevivência na era da eletrônica” (QUEIROZ, 1990, p. 4).   

 

Na convergência do passado colonial com a ‘era eletrônica’ transpareceu que o sentido dado pela colonização foi um imperativo moral, tanto para a ‘sobrevivência’ dos indígenas quanto para o “triunfo” do racionalismo. Na argumentação final de Queiroz contra as representações da bondade natural e da ‘integração com a natureza’ foi feita uma crítica ao livro do escritor franco-mauritano Jean-Marie Gustave Le Clézio, “Le Rêve mexicain ou la pensée interrompue” (1988). Para ela, havia a mesma denúncia de Las Casas na interrupção do sonho mexicano pela conquista: “A força mágica: aurelada de mistério, que a bárbarie ocidental não procurou entender nem respeitar” (QUEIROZ, 1990, p. 4).

 

Entretanto, no argumento de Maria José de Queiroz relacionado à defesa do modelo ibérico de legalidade jurídica ao invés do “bom selvagem” francês ou da ‘magia’ indígena impedia uma “nostalgia”, um “remorso da vilania” e “o sentimento da perda irreparável” comum nos escritos de Las Casas e Le Clézio. E ironizava: “Não seria de desejar que nós, brasileiros, Sting à parte, tomássemos boa nota dessa reflexão?” (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

Por meio de assertivas a ensaísta, continuou a explanar sobre a importância do racionalismo “à míngua do esplendor das culturas maias, astecas e incas, o nosso índio”. Ela ainda explicou que “na sua mais absoluta inocência” inspirou Morus, Erasmo, Rabelais, Montaigne e Luis Molina sobre a verdadeira, “bondade natural”. Bem como, que esta bondade foi transformada em doutrina filosófica-teológica por Molina para pensar os temas da moralidade e da liberdade “humana” (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

No artigo, ela ainda explicou que o molinismo foi o "precursor das ciências sociais” através da “independência das ciências do homem em face da teologia que define o espírito moderno”. Assim, o sentido da colonização ibérica fez do “índio” em sua “inocência” um modelo para inspirar os homens das letras europeias a criarem uma “nova idade”. Pois, o indígena brasileiro “diferente da visão mágica dos astecas, maias e incas” que defendia Las Casas e Le Clézio, permitiu aos europeus superarem o encantamento do mundo pelo racionalismo (QUEIROZ, 1990, p. 4). 

 

O sentido dialético descrito nas entrelinhas, pelo qual através de conflitos algo positivo surgiria, condicionam mais um uso multicultural na análise histórica. Quando a autora escreveu o “nosso” passado, incorporou também os passados indígenas, mas indicou apenas a existência de um único protagonismo, a do Ocidente-europeu. Nesta perspectiva, as narrativas históricas fundamentaram-se na ilusão da universalidade e da racionalidade, pois partem “sempre” do mesmo parâmetro técnico-científico, filosófico e espacial, a Europa.

 

A filosofia da história decorrente dessa compreensão definia “um todo na história” como um “singular-coletivo” (RICOUER, 2007, p. 321). Assim, a totalidade das realidades e modos distintos de vida dos povos indígenas tornaram-se um apêndice no projeto e na narrativa europeia. Deste modo, a exaltação da colonização ibérica como parte desta filosofia da história transformou os horrores da invasão em discursos neutros a serem incorporados na narrativa histórica sul-americana, a exemplo o tribunal de Valladolid, considerado um “interregno” na invasão ou o artigo publicado no Estadão.

 

Conclusão

 

Ao analisar de forma crítica o artigo de Maria José de Queiroz procurou-se fugir à “húbris do ponto zero” que o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez discute. De forma a entender que não há neutralidade nos discursos, bem como que a noção de universalidade deve ser repensada para compreensões plurais sobre as relações de ser, saber e poder, e assim superar discursividades que pressupõem hierarquias entre culturas. 

 

Considerou-se que o artigo do Estadão foi um claro exemplo dos sentidos empregados pelo multiculturalismo para a reificação das identidades coletivas e pela definição de tensões por meio da racialização. Entretanto, as diversas memórias coletivas não são iguais ao sentido moral pretendido na matéria jornalística. Mesmo que a ideia da bondade natural do indígena tivesse permitido reflexões sobre a utopia, a liberdade humana e a formação das ciências sociais, não foi mencionado qualquer saber ou prática indígena sobre a elaboração desses conceitos. 

 

A descrição feita no texto de Maria José de Queiroz demonstrou apenas a centralidade do pensamento europeu em seu “contato” com outras culturas. Assim, as narrativas de poder foram, novamente, disfarçadas para subalternizar os povos indígenas, dando a ilusão que existia apenas a forma europeia de narrar, de saber e de conhecer. O sistema-mundo capitalista condicionou a colonização à uma temporalidade, assim a modernidade e a colonialidade são constituições simultâneas que visam a apropriação dos territórios e dos povos pelos saberes. No Encontro Nacional de Pajés em 1987, transcrita pelo historiador Victor Leonardi, Raoni Metuktire disse o avesso da escrita de Maria José de Queiroz:

 

“Quem nasceu primeiro aqui no Brasil não foi branco, foi índio. Avô de índio nasceu primeiro, no Brasil inteiro. Chegou português, chegou briga, começou matar. Essa coisa para mim não é alegre. Branco roubar terra, procurar madeira, procurar outro. Eu não aceito mais, eu não aceito. (...) O governador branco tem que respeitar mais meu povo. Nós não são bicho-do-mato. Minha terra Xingu eu não quero garimpeiro entra, fazendeiro entra. Se entrar e Funai não fizer nada, eu mesmo prendo. (...) Eu nunca fala mal do branco, do Sarney, do governador, então por que branco fala mal do índio? Coitado meu povo, está morrendo. (...) Eu não quero, eu não deixa branco entrar minha terra. Vocês têm que saber cultura do índio. A polícia não respeita mais meu povo. Essa é minha preocupação. Meu povo tá apertado. Não quero mais branco invadir nossa terra. Não quero mais mais matar branco” (LEONARDI, 2016, pp. 352-353). 

 

A narrativa de Raoni não foi uma descrição cronológica, mas uma evocação da ancestralidade para a vivência e resistência socioecológica. Como indivíduo, Raoni, foi construído numa determinada cosmovisão e mantém os padrões dessa sociedade, por isso, em sua história, a vivência e a resistência não dão lugar para o singular em sua separação do “homem” da “sociedade” e da “natureza” do “ser”, esse seria o ‘saber’ de sua cultura, uma contraposição ao individualismo e o ao racionalismo. Como efeito da colonização e da colonialidade, estas dicotomias tornaram-se um modo de vida que, infelizmente, ameaça a vida de todos no planeta e até agora as soluções encontradas nesta lógica não apresentam-se como promissoras. 

 

Longe de ser um processo de mera associação feita por ativistas e naturalistas, ou mesmo, terem sido originária de uma classificação europeia de “bondade”. A consciência ecológica presente nos modos de vida indígenas é, como bem ilustrou Davi Kopenawa, uma interação: “Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos” (KOPENAWA, 2015, p. 16). 

 

Referências biográficas:

 

Me. Álvaro Ribeiro Regiani, professor de História das Américas na Universidade Estadual de Goiás - Campus Nordeste.

 

Referências bibliográficas:

 

CERVO, Amado Luiz: BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.

 

KOPENAWA, Davi: ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami; tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro — 1a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2015.

 

LEONARDI, Victor Paes de Barros. Entre árvores e esquecimentos: a modernidade e os povos indígenas no Brasil. História social dos sertões. 2. ed. Ed. Universidade de Brasília / Paralelo 15, 2016.

 

MÜLLER, T. M. P., & FERREIRA, P. A. B. A. A decolonialidade como emergência epistemológica para o ensino de história. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 26(89). 

 

QUEIROZ, Maria José de. O mito do bom selvagem. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano VII, n. 494, 13 de jan. 1990. Cultura.

 

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

 

RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: Ensayos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.

 

SOUZA FILHO, José Alexandrino de. A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”: um estudo sobre o papel do índio brasileiro na entrada de Henrique II em Rouen em 1550. Revista Morus Utopia e Renascimento. Campinas, SP, Número 5, 2008.

 

VITÓRIA, Francismo. “Releitura” sobre os títulos legítimos pelos quais os índios podiam ser sujeitos ao poder dos espanhóis. In. SUESS, Paulo (Org.). A conquista espiritual da América espanhola. 200 documentos - século XVI. Tradução de José de Sá Porto e Jaime Agostinho Clasen. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1992.


 

22 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, muito interessante!
    Pergunta: a mídia busca reduzir o discurso eurocêntrico, mas ainda nos deparamos com isso em alguns veículos de comunicação e na própria opinião que muitas pessoas emitem. De que maneira podemos aplicar o multiculturalismo em nossas práticas coditianas?

    Att.
    Thiago de Souza Modesto

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    1. Obrigado pela leitura e pela pergunta Thiago de Souza Modesto!
      Parto de um uma reflexão distinta da sua, não considero que a mídia impressa, como exemplificado neste ensaio, procure 'reduzir o discurso eurocêntrico'. Bem como, não procuro aplicar o 'multiculturalismo', pois pondero que a falta de uma análise interseccional não permite que cada expressão cultural, social, política e individual seja incluída nesta sociedade neoliberal.
      De toda forma, acredito que a perspectiva da interculturalidade crítica seja um caminho teórico-metodológico importante para esse debate.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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  2. Buen día, en relación al articulo presentando, quiero expresar que la importancia ecológica también viene siendo utilizada por la UNESCO en su relación con el patrimonio y el turismo, en este sentido, creo que la narrativa de Buen Salvaje no solo ha sido promocionada por los Franceses sino por todas aquellas empresas turísticas que plantean un nuevo campo de mercado en el turismo de naturaleza, en los itinerarios culturales. En este sentido, ¿la reflexión realizada en este articulo ha pensado una transferencia a la Escuela, donde se discutan por un lado los argumentos basados en el desarrollo económico utilizados por el Estado y la empresa para la apropiación de las tierras y los recursos naturales indígenas y la respuesta del buen salvaje y el respeto a la ecología de las comunidades indígenas apoyadas por las ONGs?, es obvio que la discusión frente al racismo ha sido aplazada en la escuela y la sociedad por años, por lo cual, ¿usted conoce escenarios de discusión del racismo y la etnicidad en su país, que reconozcan la fuerza de los discursos sobre los derechos fundamentales y sociales de las indígenas y los no indígenas?

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    1. Boa noite! Obrigado pela leitura e pelas perguntas.
      Como o tamanho desse ensaio foi ber curto, eu não explorei as implicações das relações ecológicas e a educação patrimonial e turística. Esta discussão daria um excelente artigo. De toda forma, o surgimento de uma nova representação sobre os indígenas passa necessariamente pela aceitação de organizações como algumas OnG's. Aqui no Brasil, a luta antirracista permanece em consonância com a resistências dos povos indígenas. A exemplo as ações produzidas em escolas interculturais após Lei 11.645/2008.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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  4. Boa noite, professor.

    Gratidão por este artigo e o conhecimento adquirido. Lembrou-me muito os nossos debates em aula sobre o querer fazer do povo indígena de criança, na tentativa de justificar que a salvação seria a civilização eurocentrada. Cabe também vermos o quanto povos tão diversos, com várias línguas, diversidades culturais, é colocado como um só segundo a vontade do homem branco. É revoltante que tais práticas estejam presentes no nosso cotidiano, nas salas de aulas, nas formas como abordamos essas diversidade. Como futura professora de História, ficarei atenta ao modo como irei repassar tais conteúdos. Conto, também, com os outros conhecimentos que o senhor irá nos repassar em aula para agregar a minha jornada de licenciada. Gratidão pelo seu trabalho e respeito com a história dos verdadeiros donos desta terra.

    Leitora: Karoline Pinheiro da Silva

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    1. Obrigado pela leitura Karoline Pinheiro da Silva.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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  6. Excelente texto! Poderia explicar se em sua pesquisa você conseguiu, mesmo que sem a possibilidade se sistematizar, a dificuldade (desconhecimento) das mídias ao se trabalhar com conceituação das temáticas? existe a possibilidade dos desencontros do discurso não serem intencionais?

    Att: Fabricia da silva lopes

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    1. Obrigado pela leitura e pela pergunta Fabrícia Lopes.
      Eu não entendi muito bem a sua pergunta, tentarei responde-lá, em partes. Parto da compreensão que há uma estrutura que influência de sobremaneira a forma como a mídia impressa e televisa tematizam determinados aspectos sociais. Como são empresas, estas tratam de negócios, mesmo vendendo produtos de interesses coletivos.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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  7. Inês Valéria Antoczecen25 de maio de 2021 às 17:34

    Boa tarde. Excelente seu texto. Quando nos deparamos com os escritos sobre a população indígena, sempre encontramos diferentes colocações. Há alguns anos atrás ainda traziam uma visão muito romantizada dos portugueses e indígenas, por isso muitas pessoas se referem aos indígenas como pessoas que não querem trabalhar. Uma história menos idealizada aprendemos no Ensino Superior. Nos atuais livros de História já não há mais informações sobre o povo indígena, a História do Brasil foi substituída pela História Antiga. Na sua opinião, por que aconteceu esta substituição?

    Inês Valéria Antoczecen

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    1. Bom dia! Obrigado pela leitura e pelas perguntas Inês Valéria Antoczecen.
      Os processos de subalternização das populações indígenas ao longo do tempo teve várias e distintas representações, a "do preguiçoso" para justificar a substituição da escravidão ameríndia pela africana foi uma deles. Contemporaneamente, uma representação bem frequente em livros didáticos é retratar os povos indígenas em um passado distante para, ao meu ver, continuarem a analisarem estes como "primitivos" em relação a "nós" (os não-indígenas) como contemporâneos, assim se retira a dinâmica cultural deles e a deixa em umbral da tradição. Entretanto, desconheço a substituição da História do Brasil pela História Antiga.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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  8. Parabéns pelo texto Álvaro Ribeiro Regiani.
    Pergunta: A quem favorece o mito do "bom selvagem"?

    At.te

    Cleberson Vieira de Araújo

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    1. Obrigado pela leitura e pela pergunta Cleberson Vieira de Araújo.
      Há vários grupos de interesses que se favorecem com essa representação, um exemplo concreto, se dá pelas empresas que lucram com a economia sustentável.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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    2. Bem pontuado, obrigado Álvaro.

      At.te
      Cleberson Vieira de Araújo

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  10. O romantismo como escola literária reforçou uma visão romantizada não só do índio mas de toda a escravidão e racismo, partindo disso fica a pergunta, uma nova escola literária focada na visão dos índios sobre eles mesmos e sobre a sua história séria importante para tirar essa visão eurocêntrica e romantizada da população sobre o índio?


    Ana Cristina Pinto Fortes

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    1. Boa tarde! Obrigado pela leitura e pela pergunta Ana Cristina Pinto Fortes!

      Acredito que sim, mas considero importante faz uma distinção entre literatura e protagonismo. Começo pela última, sempre houve protagonismo indígena em suas narrativas desde da invasão passando pela idealização dele como bom selvagem. Por outro lado, a literatura foi uma forma de mostrar um protagonismo não-indígena e eurocentrado. Desta forma, penso que seria importante descentralizar a europa e centralizar outros protagonismos por meio da literatura, do jornalismo, da historiografia e do ensino de história.
      Atenciosamente
      Álvaro Ribeiro Regiani

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  11. Este comentário foi removido pelo autor.

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  12. Incrível o texto. Interessante as mais diversas referências e autores com períodos distintos, mas, o que leva a reflexão é que alguns, ou grande parte, dos estereótipos que são vinculados aos indígenas, perpetuam até os dias atuais, o conceito do "bom selvagem", dessa inocência por trocar terras por espelhos. Ressaltando também sobre o racismo que essa etnia sofre, que pouco se é falado.

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  13. Ótimo texto! E minhas duas reflexões sobre o tema é sobre como se relacionam os povos indígenas brasileiros com a "identidade nacional" construída ao longo de décadas por meios midiáticos "eurocentrados"?
    E também sobre se os povos indígenas deveriam se adequar ao nosso modo de vida, ou serem devidamente amparados e protegidos para que perpetuem o seu? E como a falta de uma reflexão sobre esse questionamento perpetua a violência contra esses povos.

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