Carina Santos de Almeida e Cleisy Narciso Silva

A HISTORICIDADE NA PESQUISA: APONTAMENTOS SOBRE MEMÓRIAS E DOCUMENTOS DOS POVOS INDÍGENAS DE OIAPOQUE 

  

A historicidade dos povos indígenas no Brasil não se traduz em um simples ato de escuta, leitura, narração ou interpretação de histórias, principalmente quando se trata de perspectivar (re)existências múltiplas e latentes nos tempos passado e presente. Comumente, a historicidade emerge na pesquisa como reminiscências, fragmentos de recordações que necessitam ser reconstituídos e cardados como os fios de algodão na tecitura das redes. Essa paralela analogia sustenta nossas lentes de percepção neste trabalho, seja porque parte da relação de alteridade, mas, também, da intrínseca proximidade que nos envolve enquanto aluno e professora no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal do Amapá (CLII/UNIFAP). Esse texto não se propõe nestas breves páginas escritas analisar as complexas instâncias que atravessam as memórias, mas apresentar algumas reflexões sobre a historicidade dos povos indígenas de Oiapoque – com destaque para as memórias mun uaçá, que se originam de nossos estudos em História.

 

Os povos indígenas de Oiapoque vivem nas cercanias do rio Oiapoque, fronteira setentrional brasileira do Amapá com o território ultramarino da França, a Guiana Francesa. Integram o complexo multiétnico dos povos indígenas do Amapá e norte do Pará e se autorreconhecem na contemporaneidade como Galibi-Marworno, Karipuna, Palikur-Arukwayene e Galibi do Oiapoque ou Ka’lina. Tais sociedades falam suas próprias línguas e vivem nas Terras Indígenas demarcadas e homologadas Uaçá, Galibi e Juminã. Ao longo do século XX, estes povos tiveram distintas experiências com o indigenismo brasileiro e passaram a ser “atendidos” pelo Estado a partir do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que posteriormente transformou-se na Fundação Nacional do Índio (Funai). 

 

Na longínqua fronteira do rio Oiapoque, o SPI chegou na década de 1930 e criou duas unidades locais. O Posto Indígena de Fronteira e Vigilância Luiz Horta foi instalado em 1941 na confluência do rio Murupi com o rio Oiapoque, e passou a atender os povos indígenas que viviam no alto curso e cabeceiras deste rio, como os Emerenhão ou Emerenhões, conhecidos como Teko, os povos Urukuainos/Waianos ou mais apropriadamente Waiana, além de esporadicamente atender aos Oiampi ou Wajãpi.  Enquanto o Posto Indígena de Educação e Nacionalização Uaçá foi instalado em 1942 na confluência do rio Curipi com o rio Uaçá, no local denominado Encruzo, para atender aos povos Karipuna, Palikur e Galibi (Marworno) (ALMEIDA; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2019). 

 

Há algum tempo estamos empenhados em compreender como se desenvolveu a atuação do indigenismo brasileiro entre os povos indígenas do Oiapoque e, no decorrer dos estudos, surgiram emergências sensíveis das latências históricas que foram desveladas por vívidas memórias mun uaçá. Faz-se necessário destacar que o autor deste texto – Cleisy Narciso Silva – além de orientando de iniciação científica (PIBIC/CNPq) no período de 2018 a 2020, é indígena mun uaçá. As pessoas que vivem nas redondezas do rio Uaçá, tributário que deságua na foz do rio Oiapoque, são nominadas de mun uaçá, que na tradução significa simplesmente “gente do uaçá”, reconhecidos atualmente como Galibi-Marworno. 

 

Nossas pesquisas percorreram metodologicamente a análise documental sobre o indigenismo rondoniano-varguista. Consultamos diversos documentos históricos da 2ª Inspetoria Regional do SPI que se referiam aos povos do Amapá e, nesse caminho investigativo, apresentou-se as memórias de Maria Jovelina Nunes e de Maria Dorica, ambas são mun uaçá e avós de Cleisy, residem na Aldeia Kumarumã e compartilharam lembranças sobre esse período. Muitos aspectos reverberam dos estudos históricos, dentre eles (re)conhecer as histórias vividas e as novas formas de (re)organização e (re)ordenamento territorial emergidas a partir das relações impostas pelo estado brasileiro ao povo Galibi-Marworno. 

 

No tempo do SPI, para que o Amapá se consolidasse enquanto uma região brasileira, era preciso que os povos indígenas regionais falassem o português em detrimento das próprias línguas. Naquela época o contato com a Guiana Francesa era constante (sem exigência do visto) e a noção de fronteira não passava de uma concepção abstrata e distante do cotidiano dos povos autóctones do Oiapoque que a vivenciavam livremente nas travessias das águas fluídas e intercambiáveis dos rios. 

 

O percurso escolhido pelo indigenismo do SPI na região de Oiapoque seguiu o protocolo adotado pela agência, principiando com a instalação de postos indígenas que promovessem a nacionalização, ao mesmo tempo que a vigilância da fronteira. O SPI visava para além da assistência e proteção, sobretudo, a integração dos povos autóctones à sociedade brasileira. Os documentos da agência estudados e as memórias de Maria Jovelina e de Maria Dorica expõem diversas práticas do indigenismo, uma das principais foi a instalação de uma escola de instrução primária, com uma professora e um professor não indígena que não falavam a língua nativa, mas que tinham a incumbência de ensinar o português e proibir os alunos indígenas de falar o Kheuól. As narrativas mun uaçá extrapolam qualitativamente a documentação histórica e permitem que as latências históricas rompam o silêncio e o esquecimento, adentrando à história indígena contemporânea com autodeterminação.

 

Em face da pandemia de Covid-19, os rumos metodológicos de nossas pesquisas foram alterados em 2020, e decidimos ajustar muitas coisas, dentre elas resolvemos desprender-se dos documentos do SPI. Então, surgiu a emergência das memórias e Cleisy partiu para entrevistar uma de suas avós com quem ainda não havia conversado. Essa decisão foi comedida porquanto fomos transpassados pelo vírus, outrossim, sabemos o quanto é difícil conseguir relatos sobre o indigenismo de estado, sobretudo porque um tempo inquantificável separa o presente que vivemos dos idos anos de 1930, 1940, 1950, 1960. Cleisy reside na Aldeia Tukay, situada nas margens da BR-156, passou-se alguns meses e o Covid chegou entre os povos indígenas de Oiapoque, felizmente, a sua família teve sintomas leves, mas todas as aldeias da região foram acometidas pela Covid, conforme relata o livro Fala parente! A covid-19 chegou entre nós de Elissandra Barros (2021). 

 

Quando tudo ficou aparentemente mais calmo em termos de contágio, as aldeias começaram a liberar a entrada e saída das pessoas. Cleisy saiu da Aldeia Tukay com destino ao Kumarumã, sua viagem demorou cerca de 5 horas de voadeira, descendo o rio Uaçá, chegando lá ele ficou hospedado na casa de sua avó Maria Jovelina. Em sua estadia, Cleisy pode conversar e explicar o desejo de entrevistá-la. O assunto escolhido trataria da “escola do tempo de infância” e alcançaria, se possível mnemonicamente, personagens conhecidos do indigenismo regional, como “Djalma”, “Eurico”, “Frederico”. Cleisy confidencia que sua avó ao ser questionada sobre a entrevista sorriu e disse-lhe: – Ah meu filho, eu não sei não! O neto insistiu e respondeu-lhe: – Calma, é só pra senhora pensar, não será hoje a entrevista, é só pra refrescar a memória! Então, a avó afirmou-lhe: – Tah, eu vou pensar! Definitivamente, as memórias apresentam subterfúgios. 

 

Os dias transcorreram em companhia de sua avó materna, Cleisy relata que passearam juntos pela Aldeia Kumarumã, acompanhando o rio e percebendo o quão havia de beleza naquela natureza. Em seguida, Maria Jovelina foi visitar sua mãe, Dona Mosiana, uma idosa centenária e que foi acometida pela Covid-19, deixando-a doente e facilitando a perda das memórias. A filha e a mãe almoçaram juntas, após, Maria Jovelina voltou para casa, chegando por volta das 15 horas, indo para seu carbe sozinha. Cleisy recorda que avistou a avó sentada fazendo um remédio caseiro quando foi ao seu encontro. Chegando lá, aproximou-se dela e disse: – Vó, a senhora pensou no que te falei?! – Maria Jovelina respondeu rindo: – Eu não sei! – o neto, insistente, perguntou-lhe: – Vó, é só você falar o que a senhora sabe, só isso. Cleisy continuou: – A senhora estudou? Ela respondeu: – Sim, eu estudei! – o jovem pesquisador continuou com outra pergunta: – A senhora ouviu falar de Djalma? – e Maria Jovelina disse-lhe: – Sim, Djalma eu conheci, era assim... e continuou – Ah, Frederico era chefe da Funai. Após esse caminho sinuoso de memória, Cleisy reforçou que tudo que desejava saber era uma questão de lembrança, disse o jovem neto: – A senhora lembrou vó! Agora é só relaxar que a senhora vai me contar tudo de novo, só que agora eu vou gravar nossa conversa, a senhora só vai acrescentar seu nome, filha de quem é, contar o que a senhora acabou de me falar agora pouco, certo?! Maria Jovelina então lhe falou: – Está certo! 

 

Esse pequeno trecho da entrevista expõe as sensibilidades e relações de confiança que as entrevistas pressupõem, mormente se elas estiveram envolvidas pela teoria-metodologia da História Oral, discussão importante, mas que não pretendemos fazer aqui. A maior dificuldade na condução da entrevista com Maria Jovelina consiste em compreender o seu tempo de rememoração e a disponibilidade mnemônica para alcançar lembranças pretéritas e dolorosas vividas. A entrevista requer paciência, precisa de respeito ao tempo do outro, vontade e coragem para mexer no passado. Maria Jovelina Nunes dos Santos tinha no momento da entrevista 71 anos de idade, nasceu em 01/01/1949, na Aldeia de Kumarumã, é filha de Dona Mosiana dos Santos e Guilherme Nunes, e foi casada com o senhor Henrique Narciso, tendo 7 filhos, sendo 5 mulheres e 2 homens.

 

No passado, os “índios do Uaçá” viviam distribuídos em pequenas ilhas (aldeias) ao longo do rio Uaçá. Com a chegada dos não indígenas do SPI e, consequentemente, com a implantação da escola e da “assistência” e “proteção tutelar”, os mun uaçá passaram a se concentrar em uma só aldeia, o Kumarumã, conhecida até então como Vila de Santa Maria dos Galibi (TASSINARI, 2001a). Este povo – Galibi-Marworno – apesar do nome, se diferencia substancialmente do povo Galibi de Oiapoque ou Kalinã, que migrou para o Brasil na década de 1950. Os documentos do indigenismo chamam os mun uaçá simplesmente de Galibi até o início da década de 1970, não sabemos exatamente quando foi que esse nome Galibi recebeu seu complemento, Marworno, entretanto, consideramos que este novo etnônimo está relacionado com a chegada do Padre Nello Rufaldi à região em 1972 e 1973, momento em que os povos indígenas regionais passaram a se articular politicamente em um movimento, precisando-se encontrar elementos de distinção não apenas na cultura, como também no nome. 

 

É recorrente conversarmos com os mais velhos nas aldeias e ouvirmos a expressão “no tempo do SPI”, “no tempo do Eurico”, “no tempo do Djalma”, “no tempo do Encruzo”. O SPI de fato marcou presença nas memórias regionais. O órgão instalou um entreposto no interflúvio do afluente rio Curipi com o rio Uaçá, chamado Encruzo. Esse local ficou grafado nas memórias dos mais velhos e no imaginário dos mais jovens. Apesar do indigenismo de estado preconizar que o SPI era um órgão de proteção aos povos indígenas, a agência deixou outras marcas históricas, Maria Jovelina lembra que os “parentes” que iam “trabalhar” no Encruzo faziam a extração de óleo de andiroba, salgavam peixe, entre outras atividades impostas pelos agentes do SPI. Havia certo controle sobre as aldeias dos povos indígenas de Oiapoque. 

 

A narradora explicou que “Quando um homem casa com uma mulher que está estudando, e faz com que a mulher largue os estudos, era considerado uma infração! Ele era mandado pro Encruzo ali para trabalhar um certo tempo. E depois liberado. E se o indígena quiser ficar mais um tempo além do que já ficou para trabalhar, ele ganhava uma diária, conforme o tempo que ficasse.” Mas o Encruzo além de um lugar de punição e expiação, tratava-se de um espaço privilegiado de vigilância, único caminho que conectava o baixo rio Oiapoque, adentrando pelo Oceano Atlântico e da Guiana Francesa, para se ter acesso aos rios e aldeias dos povos Karipuna, Palikur e Galibi (Marworno). 

 

Cleisy já havia conversado com sua avó paterna chamada Maria Dorica e a irmã dela, sua tia avó Isoleide, um ano antes da pandemia. A narrativa de Dorica destacou que “Antes nós vivíamos em várias aldeias, distribuídas ao longo do rio, não ficávamos em um só lugar, mudávamos assim como mudávamos de roça. A roça é o que fazia com que fossemos para outros lugares. As nossas casas de palha e folha de inajá lembram-me quando ia para escola, ia de canoa remando para o Kumarumã. Quando chegava lá eu tinha medo, sempre sentando no fundo com as amigas. Lembro quando a gente errava as respostas da tabuada, éramos castigos com a palmatória. Estudávamos com dois professores ao mesmo tempo, um homem e uma mulher. O professor não pegava tão pesado como nós, mas a professora não queria nenhum erro e se errar repetia tudo de novo. Quando ela cansava dos que erravam, pedia a eles que sentassem e estudassem, porque quando for chamar de novo, ia ser palmatória. A palmatória doía demais. Uma vez tinha uma festa de Santa Maria no Kumarumã, que nós fomos proibidos de ir a festar pela professora, quando chegar em sala de aula e não souber responder a tabuada ia ser castigado com a palmatória. Ela pediu ao seu filho, um rapaz novo, que vigiasse para ver quem fosse para festa. Eu e umas amigas, como somos jovens, queríamos ir, e resolver ir. Quando chegou o dia da aula ela logo falou: – Quem estudou vai se dar bem e quem não estudou e resolveu ir a festa vai ser castigado. E nós lá no fundo com medo, nem mesmo nossos colegas queriam sentar perto de nós, para que não apanhassem junto com a gente. Eu lá quieta com medo! Não queria que a professora me chamasse, mas sim que o professor me chamasse para fazer as perguntas. Mas não escapamos do castigo. Em uma mão levamos 6 vezes e na outra 6 também, total de 12 vezes. As mãos chegaram a inchar de tanto apanhar, lembro também que meu marido foi mandado para o Encruzo, foi preso devido que ele casou comigo só porque eu era menor de idade. Era muito nova ainda. Ele ficou trabalhando no Encruzo por um ano. Depois que ele saiu e voltou, ficamos juntos. [...] A nossa língua é que foi mais afetada, antes era o Galibi. Meus pais falavam pouco o Galibi, mas eu fui criada falando o Kheoul até hoje.”

 

Desse breve e denso trecho extraído da entrevista de Maria Dorica, emergem muitas situações que qualificam as primeiras escolas implantadas entre os Galibi (Marworno) e descrevem as relações assimétricas que existiam entre os alunos indígenas e os professores não indígenas. A escola implantada pelo indigenismo tornou-se instrumento de “civilização”, e a palmatória, símbolo de punição capaz de marcar tanto física quanto psicologicamente os povos indígenas. A escola não parece resguardar tão boas lembranças. 

 

A narrativa de Maria Jovelina é tão contundente quanto de Maria Dorica, reconhece os equívocos da incipiente escola entre os mun uaçá, destaca a imposição de outras práticas, a interrupção no processo de educação indígena, a ação da punição com “palmatória”, marcando o corpo e as memórias: “Antes de chegar na escola, tem que chegar bem limpo. Se tu chegar sujo, não cuidar do corpo, não lavar a cabeça, se estiver com cheiro de pitiú, então eles te batem na cabeça com régua, se tu faltar aula, for pra roça com tua mãe e fizer teus afazeres, então ela te bate quando tu for pra escola de manhã. Ela te pega e te bate com palmatória na mão. Nas duas mãos até chegar 12 vezes, se não for tão grave o teu caso, são necessários só 6 vezes na mão, meia dúzia. Uma vez quando eu apanhei dessa palmatória de 12 vezes, então minha mão ficou roxa aqui no meio. Dos dois lados ficaram roxa. Não conseguia segurar com as mãos, assim mesmo ralei a mandioca com a minha mãe com grande sofrimento, era com ralador, não era com motor como é hoje, assim do mesmo jeito trabalhei com minhas mãos, minhas mãos doíam. Quase que me deu febre! Acho que cheguei a ter febre. Era assim que nós estudávamos naquele tempo. Assim faziam com a gente. Assim que a escola era. Tempo que o chefe era Dêjam, ele mesmo Djalma, como era chamado.” Maria Jovelina recorda a dor que ficou em suas mãos, que apesar de roxas e doloridas, tiveram que ajudar a mãe a ralar mandioca, pois eram nestas condições que “estudávamos naquele tempo [...] do chefe Dêjam”. 

 

Desde a chegada do SPI na região de Oiapoque, mas também de Getúlio Vargas ao poder, um dos principais elementos de ação da proteção tutelar entre os povos indígenas de norte a sul no país, foi a implementação da educação escolar, ou, a construção de escolas entre os “índios” como forma de promover a “civilização” e “nacionalização”. A atuação da escola ocorreu no Posto Uaçá como também no Posto Luiz Horta, conforme é possível acompanhar nos documentos do SPI. Embora presente no Posto Luiz Horta, o número de estudantes na escola nunca foi expressivo, uma vez que a própria densidade indígena atendida pela agência neste Posto nunca chegou a ultrapassar mais de trinta ou quarenta Emerenhon ou Waiano. No Posto Uaçá a escola surgiu da ação promovida na década de 1930 pelo interventor do Pará no Amapá, Cel. Magalhães Barata, com a criação de duas unidades, uma na Aldeia Santa Maria ou Kumarumã, e outra na Aldeia Espírito Santo para atender aos povos do Curipi. A “recepção das escolas” entre os povos do Uaçá não foi homogênea e, inclusive estas escolas contribuíram para promover um reordenamento das aldeias indígenas do Uaçá, conforme explica Tassinari (2001a). Dessa forma, uma das estratégias de atuação entre os povos indígenas do Oiapoque foi promover paulatinamente o fortalecimento da escola entre os “índios” como subterfúgio civilizacional. 

 

Considerando as narrativas de Maria Dorica e de Maria Jovelina, poderíamos nos perguntar porque a escola conseguiu se tornar uma estratégia bem sucedida de atuação do indigenismo se ela deixou recordações adversas. Contudo, é importante entendermos que a escola é o lugar onde se ensina a ler e a escrever, espaço para o domínio de outros processos de comunicação e interrelação. No passado regional, a escola promoveu a concentração dos povos indígenas nas principais aldeias. A aldeia Kumarumã paulatinamente se constituiu em um lugar estruturado, com posto de saúde, duas escolas (municipal e estadual), igrejas evangélicas e católica e uma organização capaz de atender considerável densidade demográfica, tornando-se ao longo do século XX a maior de todas as aldeias existentes entre os povos indígenas de Oiapoque, com cerca de mais de duas mil pessoas residindo na ilha. Atualmente, os mun uaçá estão promovendo um reordenamento territorial, descentralizando-se, abrindo novas aldeias e construindo novas residências às suas famílias ao longo do rio Uaçá. Algumas aldeias estão implantando escolas com professores indígenas, graduados no Magistério Indígena e na Universidade Federal do Amapá para atender a especificidades da educação escolar do povo. Implantar uma escola tornou-se ação para o fortalecimento da comunidade, instrumento de luta política das sociedades. Talvez seja pertinente considerarmos que para os povos indígenas de Oiapoque a escola transformou-se em um lugar de resistência cultural, política e territorial. Esses são alguns dos elementos de historicidade que compartilhamos neste trabalho e que merecem aprofundamento temático em outros espaços oportunos.


Referências biográficas

 

Dra. Carina Santos de Almeida, professora da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).

 

Cleisy Narciso Silva, estudante do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).


Referências bibliográficas

 

ALMEIDA, Carina S. de.; OLIVEIRA, Leonia R.; OLIVEIRA, Lilia R.. “No tempo do SPI”: proteção e indianidade entre os povos indígenas de Oiapoque. Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 38, jan./abr. 2019, p. 79-102.

 

BARROS, Elisssandra. Fala parente! A covid-19 chegou entre nós. Macapá: Ed. UNIFAP, 2021. 

 

TASSINARI. Antonella I. M.. Da civilização à tradição: os projetos de escola entre os índios do Uaçá. In: SILVA, Aracy l. da; FERREIRA, Mariana (Org.). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001a. p.157 – 195.


7 comentários:

  1. Olá.
    Gostaria de saber se na pesquisa de vocês é evidenciado qual ou quais memórias relacionadas à política demarcatória de terras, por agentes do Estado, existentes entre as comunidades indígenas do Oiapoque?

    Luciano Araujo Monteiro

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    1. Boa noite Luciano. As memórias sobre a demarcação de terra em geral aparecem em nossas pesquisas nas memórias dos membros das aldeias e comunidades associadas as últimas décadas do século XX. Os agentes do Estado surgem nas narrativas relacionados ao SPI e a Funai. O SPI não procurou, segundo nossos estudos, demarcar terras. Quem se direcionou nessa perspectiva foi a Funai, mas também porque foi suscita pelo contexto histórico da atuação da política indígena. Não sei se respondemos a sua pergunta, esperamos que sim.

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  2. O texto trás uma abordagem comovente sobre o inicio da educação do povo Oiapoque. Queria saber quais eram as politicas do SPI, o que ele previa, o que assegurava?

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    1. Olá Nathana! O SPI corroborou para a implementação da Educação escolar e, também, para sua imposição aos povos de Oiapoque. Na realidade, a implantação das escolas estava associada a fundação dos postos indígenas, em diversas partes do país. A escola contribuía para a imposição de novas práticas aos povos. Essas práticas promoviam, segundo os documentos, regimentos e no contexto histórico da época, o processo de "civilização" e "integração" dos índios à sociedade nacional. As políticas educacionais eram opressoras, proibiam as línguas indígenas, impunham "práticas agrícolas" exógenas e o ensino de corte, costura, higiene, decorar o hino nacional, hastear a bandeira, entre outras. Sua pergunta permite conversarmos muito sobre esses contextos de imposição das escolas nos postos e aldeias de muitos povos indígenas de norte à sul do Brasil. Esperamos ter minimamente respondido.

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  3. Olá. Nem tenho questões. Apenas agradecimentos pelo compartilhamento. Texto muito comovente. Tem EXTREMAMENTE relevante, principalmente hoje. Espero ter mais notícias do trabalho. Publique! Abraço.
    Ivaneide Barbosa Ulisses

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    1. Olá Ivaneide, obrigada pelo incentivo e sensibilidade. Temos muito o que entender quando falamos da história da educação escolar entre os povos indígenas e de educação escolar indígena. É um tema que continuaremos nos dedicando. Gracias.

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