AS DEIDADES FEMININAS ASTECAS NA OBRA HISTÓRIA GENERAL DE LAS COSAS DE NUEVA ESPAÑA DO FREI FRANCISCANO BERNARDINO DE SAHAGÚN NO SÉCULO XVI
Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa de iniciação científica que analisou como as deidades femininas astecas aparecem no livro Historia General de las Cosas de la Nueva España (também conhecido como Códice Florentino), que foi produzido pelo frei franciscano Bernardino de Sahagún a partir de relatos coletados por seus alunos indígenas do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco durante o século XVI, no contexto da “conquista espiritual” do México.
O termo “conquista espiritual” foi cunhado na década de 1930 pelo historiador francês Robert Ricard (2014 [1933]) para se referir ao amplo processo de imposição da cultura ocidental sobre os indígenas. Tal processo, envolveu muito mais do que o elemento religioso propriamente dito – com a imposição da religião católica sobre os indígenas, que foram forçados a abandonar suas religiosidades ancestrais – e envolveu uma busca sistemática por transformar a cultura indígena como um todo, incluindo a aprendizagem do idioma castelhano e abandono das línguas nativas e a imposição do modo de vida ibérico. (RICARD, 2014 [1933]; GRUZINSKI, 2003)
Esse processo ocorreu ao longo de todo o continente americano de colonização espanhola, mas o caso do México tem sido considerado pela historiografia como o mais emblemático por ter se iniciado ainda durante a conquista militar-territorial, com o conquistador Hernán Cortés destruindo as imagens presentes no Templo Maior dos astecas e substituindo-as por imagens dos santos católicos. Essa “guerra das imagens”, como define Serge Gruzinski (2006), foi apenas o começo de um profundo processo de tentativa de extirpação daquilo que os espanhóis entendiam como “idolatrias” dos indígenas e sua substituição pela religião católica.
Os primeiros missionários encarregados de catequizar os indígenas foram enviados à região do México praticamente imediatamente após a conquista militar, que ocorreu entre 1519 e 1521. Já em 1524, chegaram à antiga capital asteca os primeiros franciscanos, que ficaram conhecidos como “os 12 apóstolos do México''. Eles buscaram, inicialmente, converter a elite de sábios astecas usando como método os colóquios, ou seja, conversas, debates a partir dos quais buscavam convencer esses sábios de que a nova religião trazida pelos conquistadores era superior à sua. (MORALES, 2002)
O frei Bernardino de Sahagún chegou ao México em 1529, na segunda leva de missionários espanhóis enviados pela Coroa. Ele viveu na Nova Espanha até o fim de sua vida, em 1590, trabalhando incansavelmente na catequização dos indígenas. O franciscano é apontado pela historiografia como um dos personagens mais importantes dentro do processo de “conquista espiritual” do México. Desde que chegou à região, o frei esteve empenhado na conversão dos indígenas ao catolicismo e entendeu que seria impossível realizar tal empreendimento de forma efetiva sem conhecer a cultura asteca. Ele encabeçou, então, o projeto de uma catequização baseada no conhecimento do passado asteca, visando compreender elementos de sua cultura para mais facilmente inserir a religião católica na mentalidade indígena. (LEÓN-PORTILLA, 1986, 2005; ALVIM, 2005)
Atuando no Colégio, Sahagún desenvolveu uma obra monumental sobre a cultura asteca a partir de relatos dos estudantes indígenas. Essa obra veio a se tornar a Historia General de las Cosas de Nueva España, composta por 12 livros manuscritos bilíngues, contendo uma coluna em espanhol e outra em náhuatl, língua dos astecas. A obra foi produzida entre 1547 e 1577 é considerada até hoje uma das fontes mais importantes para o conhecimento da cultura mexica.
Nossa pesquisa buscou analisar a forma como as deidades astecas foram apresentadas por Sahagún em Historia general... O objetivo foi entender melhor a questão da religiosidade mexica através da forma como Sahagún escreveu a respeito das principais deidades identificadas como femininas.
Buscamos entender como Historia general... apresenta a religiosidade asteca, tendo em vista trata-se de um relato híbrido, “que une dois mundos distintos em um mesmo documento.” Como explica Flora Alice L. Rodrigues (2016), a obra foi “confeccionad[a] por diferentes mãos: desde os relatos dos informantes, passando pelos alunos [indígenas] até a supervisão de Sahagún.” (RODRIGUES, 2016, p. 128)
A obra foi escrita a partir de informações fornecidas pelos informantes indígenas de Sahagún, compilados pelos também indígenas alunos do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco e organizados e traduzidos pelo frei franciscano. Nesse sentido, buscamos identificar possíveis traços dos traumas da Conquista nessa narrativa, que inclui a voz indígena, ainda que filtrada pelas lentes do catolicismo catequizador.
A linha teórico-metodológica seguida na pesquisa foi a da História Cultural. Buscamos nos basear em trabalhos que procuraram entender como traços de uma cultura podem ser identificados em fontes produzidas pelo olhar de uma outra, como as obras de Carlo Ginzburg (2006; 1989) e Héctor Bruit (1995). Bruit trabalhou diretamente com o contexto colonial espanhol na América e mostrou como é possível encontrar indícios da resistência indígena à colonização, principalmente à catequização forçada, mesmo em fontes como os textos do frei Bartolomé de Las Casas, que procuravam enfatizar o suposto caráter passivo dos indígenas.
No caso da obra de Sahagún, consideramos que, apesar de que o seu objetivo era fazer parte das novas construções históricas trazidas pela colonização, isso não a impediu de atuar também na reconstrução da história de um povo ao qual era negada a memória de sua cultura ancestral. Isso ocorreu principalmente pelo fato de o frei franciscano ter se baseado nos relatos dos indígenas para produzir as suas narrativas em espanhol, sem contar a parte escrita em náhuatl pelos próprios indígenas, visto que Historia General... era uma obra bilíngue.
O antropólogo mexicano León-Portilla (2018) destaca que a Historia General... de Sahagún pode ser compreendida como a primeira enciclopédia antropológica, desenvolvida em meio ao choque de civilizações acarretado pela Conquista. O livro é escrito com diversos filtros, tendo em vista a censura da época. O frei franciscano enfrentou diversas dificuldades ao buscar conhecer e dar a conhecer sobre a sociedade asteca, num contexto em que o 2° Concílio Mexicano (1565) buscava diminuir o poder das ordens mendicantes e o Tribunal da Santa Inquisição, em 1577, no mesmo ano em que a obra foi finalizada, proibiu todas as investigações acerca da vida indígena.
Na Historia general..., a parte das deidades astecas aparece no primeiro livro. O foco de Sahagún nessa parte é descrever as divindades mexicas desde as mais importantes até as de menor em dignidade. Ele descreve os sacrifícios que eram oferecidos a essas deidades e as festas que se faziam em sua honra. No caso das deidades femininas, observamos que a narrativa estabelece paralelos entre estas e algumas deidades da mitologia greco-romana, além de fazer analogias com o imaginário cristão. Citemos alguns exemplos:
Sahagún aproxima a deusa Cioacóatl da mãe cristã Eva, a qual foi enganada pela cobra. Segundo o frei franciscano, a tradução de Cioacóatl seria “Mulher da cobra”, mas também poderia se chamar Tonantzin, cuja tradução é “nossa mãe”. Então, ele a comparou com a figura cristã da Eva. Para Sahagún, Cioacóatl seria como Eva, responsável por criar os outros humanos. (SAHAGÚN, 2020 [1577], p. 35)
Outras deidades femininas dos astecas são aproximadas pelo frei a deusas da mitologia greco-romana, como é o caso de Chicomecóatl, que é relacionada à deusa Ceres. Ele descreve essa deusa asteca como responsável pelos alimentos que se comem e se bebem, enquanto Ceres representava a agricultura, sendo ela responsável por ensinar os homens a cultivar a terra. SAHAGÚN, 2020 [1577], p. 51-52)
Outra analogia estabelecida pelo frei é entre a deusa asteca Chalchiuhtliicue e a romana Juno, sendo ambas ligadas à água, tanto da chuva, como do mar e dos rios. Sahagún também relaciona a deusa Tlazoltéotl com a Vênus. Segundo ele, a deidade asteca de Tlazoltéotl seria, na verdade, composta quatro irmãs, sendo elas responsáveis pela carnalidade e, entre seus poderes, estariam provocar a luxuria e amores errados. (SAHAGÚN, 2020 [1577], p. 55-56)
Para pensarmos sobre essas comparações que Sahagún faz entre as deidades femininas astecas com as de outras culturas, é interessante tomarmos como ponto de partida algumas colocações de François Hartog (1999) feitas a partir de seu trabalho sobre a representação do outro na Antiguidade clássica europeia. Hartog destaca que um viajante sempre compara o novo e desconhecido com aquilo que já conhece. Além disso, aquilo que o viajante ouve ou vê dos relatos nativos não é exatamente o que ele escreve, pois sua escrita sempre está marcada por sua própria cultura, sendo envolta por julgamento e comparações.
No caso da obra de Sahagún, um caso muito significativo, que é o que escolhemos para aprofundar neste texto é o relativo à deusa Tzaputlatena. Segundo a narrativa da Historia General..., ela seria a inventora de uma resina que se chamava úxitl e essa resina curaria muitas enfermidades, como bubões na pele, ou sarna na cabeça, também podendo ser usada contra ronqueira na garganta, rachadura nos pés e lábios e contra outras doenças. Para essa deusa se faziam festas de sacrifícios, além de também venderem um pedaço de resina como um objeto que representaria a deidade, sendo, então, capaz de curar as doenças. (SAHAGÚN, 2020 [1577], p. 37)
Essa deusa aparece como uma das principais deidades astecas na obra de Sahagún, porém, os trabalhos acadêmicos atuais sobre a religiosidade mexica não abonam essa visão. Segundo os estudos dos historiadores, as principais deidades do panteão asteca eram aquelas que tinham ligação com grandes rituais ou com a criação do mundo, dos sóis ou dos humanos, o que não era o caso de Tzaputlatena. (SANTOS, 2002; WACHTEL, 1990)
Como já destacamos, Historia General... foi escrita com base em relatos de indígenas que haviam sobrevivido à Conquista. Dessa forma, é bastante plausível pensar que o destaque dado a Tzaputlatena, deidade que curaria diversas doenças, pode refletir uma hipertrofia do culto a essa deusa no contexto pós Conquista, como resposta ao panorama das epidemias que assolaram os indígenas por causa das doenças trazidas pelos espanhóis.
Pensamos que essa mudança de hierarquia de Tzaputlatena, tornando-se uma deidade central a partir do contexto da Conquista, pode ser entendida de forma semelhante à situação das deidades africanas no contexto colonial brasileiro, conforme descreveu Laura de Mello e Souza em O Diabo e a Terra de Santa Cruz (1986). A autora destaca como muitas das crenças africanas se transformaram no contexto da colônia, sendo que o papel hierárquico de várias deidades foi modificado, respondendo às novas situações vividas pelos africanos e seus descendentes escravizados. Se antes o negro, na África, pedia fecundidade, boas colheitas e chuvas, por exemplo, tudo isso perdia o sentido na nova realidade em que seus filhos seriam escravizados e as boas colheitas iriam para os senhores. Por isso, no Brasil colonial, os africanos escravizados passaram a buscar mais a ajuda de orixás como Ogum, deus da guerra; Xangô, deus da justiça; e Exu, que representaria a vingança.
De forma semelhante, também no caso do México é possível observar mudanças na hierarquia das certas deidades, como no caso Tzaputlatena, para responder à nova realidade dos indígenas a partir da experiência da Conquista.
Podemos pensar a obra Historia General.... de Sahagún como uma espécie de retórica da alteridade, que busca traduzir o “outro” (o indígena) para sua própria cultura, o catolicismo espanhol do século XVI. Podemos observar semelhanças entre o caso de Sahagún e aquilo que é mostrado por Hartog (1999) a respeito dos viajantes em seu contato com outras culturas, afinal o processo é o mesmo: “eu vi, eu ouvi – mas também eu digo, eu escrevo.” (HATORG, 1999, p. 266) Por outro lado, no caso de Sahagún, ele próprio não pôde ver os rituais, os templos, as imagens astecas como eram antes da Conquista pois, quando ele chegou ao México, grande parte disso já havia sido destruído. O que lhe restava, então, era ouvir o que tinham a dizer os nativos que haviam sobrevivido à conquista militar.
Essa situação específica da obra se basear em relatos indígenas coloca como central a questão da hibridez da Historia General..., como já destacamos. Conforme observou Rodrigues (2016) em seu trabalho sobre essa riquíssima fonte histórica, no texto da coluna escrita em nahuatl é “possível perceber elementos da tradição indígena”, ainda que não se possa pensar que se trata de “uma visão puramente indígena”, tendo em vista “os próprios filtros indígenas, a intromissão de Sahagún e o impacto do processo de cristianização, já que esses alunos [do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco] eram catequisados.” (RODRIGUES, 2016, p. 75)
Dessa forma, apesar de se tratar indiscutivelmente de uma obra pensada e elaborada pelo frei católico, não podemos nos esquecer que quem forneceu as informações sobre a religião asteca para ele e seus informantes foram os próprios indígenas, e isso depois de um processo gigantesco de traumas derivados da Conquista. E eles contam seus relatos a um franciscano que cruzou um oceano, depois de ter estudado desde criança o catolicismo e que viveu toda a sua vida fiel ao deus cristão. As informações foram colhidas pelos indígenas para escrever sobre sua antiga história, sendo que essa deveria ser negada e esquecida. Ou seja, a narrativa presente na obra está envolvida em um complexo processo cultural.
Nesse sentido, é essencial reforçar que a obra Historia General... de Sahagún tinha o intuito de servir ao projeto catequizador. Mesmo assim, como buscamos mostrar neste texto, ela também pode ser tomada como um meio para acessarmos a cultura indígena na forma que essa se apresentava no século XVI, após o trauma da Conquista.
Referências biográficas
Dra. Natally Vieira Dias, professora da Universidade Estadual de Maringá.
Daniela Rigon Ratochinski, estudante de História da Universidade Estadual de Maringá.
Referências bibliográficas
Fonte:
SAHAGÚN, Bernardino de. Historia General de las Cosas de la Nueva España [1577]. Barcelona, Linkgua, 2020.
Bibliografia:
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RODRIGUES, Flora Alice Lima. Visões sobre a conquista de México: os relatos de Bernardino Sahagún e seus auxiliares indígenas. Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2016. (Dissertação de Mestrado, 139 p.)
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WACHTEL, Nathan. In: BETHELL, Leslie. Historia de América Latina. Vol.1 – América Latina colonial (la América pré-colombiana y la conquista). Barcelona: Crítica, 1990, p. 170-194.
Olá,
ResponderExcluirAchei a comunicação muito interessante. De que maneira os conteúdos da Historia... não foram elaborados a partir de um enquadramento formal no gênero historia? Um autor que desejasse escrever um texto histórico deveria seguir um conjunto de regras para fazê-lo.
olá, pode reformular a questão?
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