RESSIGNIFICAÇÃO E RECONSTRUÇÃO: CONTRIBUIÇÕES DA FLORA AMERICANA NA FILOSOFIA NATURAL MODERNA DO SÉCULO XVI
Introdução
A figura intelectual mais significativa do pensamento ocidental, até o final do século XVI, e que perdura sua influência até fins do século XVIII, é representada por Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Sendo diretamente influenciado pelas ideias platônicas, o filósofo deixou um imenso e importante legado na posterior construção do conhecimento, principalmente na biologia e política, considerado por muitos como sendo o pai da biologia como disciplina. Aristóteles, além de seu trabalho de classificação biológica, observou e registrou em seus estudos os hábitos e comportamentos das espécies, determinando o curso dos estudos zoológicos de naturalistas modernos (GRANT, 2009, p. 52-53).
No século XVI, graças às viagens ultramarinas e a descoberta de novos possíveis domínios, ocorre na Europa uma quebra da clássica tradição medieval de um conhecimento formulado a partir da interpretação de textos antigos. A revolução da ciência, assim como a ruptura dos métodos medievais, foi além dos grandes nomes da ciência moderna, e pode ser compreendida por um processo iniciado pelos reinos ultramarinos principalmente em 1540, quando ocorreu maciços investimentos no envio de alquimistas, botânicos, físicos, médicos, entre outros letrados ao Novo Mundo (BARRERA-OSORIO, 2006, p. 2). Dessa forma, a lógica da ruptura desenvolveu suas próprias consequências (CERTEAU, 1994, p. 27) para a reconstrução do conhecimento e cientificidade.
Desenvolvimento
Um dos mecanismos da construção científica, consolidado no período dos descobrimentos, foi a escrita. A produção cultural trás um campo de expansão das operações racionais que possibilitam seu gerenciamento a partir de uma análise, uma síntese e uma massificação (CERTEAU, 1998, p. 91-92). Um sistema de elementos que constitui na aproximação, isolamento e encaixe de objetos representou uma definição dos segmentos onde ora aparecia uma semelhança, e ora uma diferença.
A junção da conveniência, emulação, analogia e simpatia, construíram o saber da semelhança, e desempenharam a função formadora do saber cultural ocidental até o final do século XVI (FOUCAULT, 1999). Longe da Eurásia e em um ambiente configurado de maneira distinta da até então conhecida, os europeus tiveram que apoiar-se na natureza como sua principal provedora de recursos, dando continuidade na percepção de que a natureza está disposta em função das necessidades humanas (THOMAS, 1989). Assim, os aventureiros além-mar também se dedicaram a tecer detalhadas descrições a partir da observação dos habitantes das Indias Nuevas, e os inúmeros elementos naturais americanos revelaram-se ao Velho Mundo graças à articulação das quatro similitudes.
Da mesma maneira que os nativos faziam uso das leis, práticas ou representações que lhes eram impostas pelo processo de domínio espanhol, os exploradores significaram, e também ressignificam, os elementos naturais americanos seguindo seus próprios dogmas, conhecimentos e leis universais, principalmente no campo da Filosofia Natural. A reunião dos conhecimentos sobre medicina, botânica, herbolaria, relevo, clima, fauna, navegação etc., permitiram que a natureza desconhecida se tornasse minimamente utilitária. Dessa forma, considerando que toda cientificidade necessita de uma delimitação e simplificação de seu material (CERTEAU, 1998, p. 94), a partir da dominação de um prematuro conhecimento e experimentação acerca do ambiente, ele pôde ser afinado aos anseios dos conquistadores. A contribuição do saber nativo, mesmo sendo atores antagônicos na história, e que passaram por processos culturais e sociais distintos, ambos faziam a ordem funcionar de uma maneira adaptada. Seus padrões afirmam-se mutuamente em posições extremas, ainda permanecendo em seus próprios sistemas de assimilações (CERTEAU, 1994, p. 27).
Amplamente produzidos no século XVI no processo de colonização da América, os inúmeros relatos, cartas, tratados, diários de bordo etc, que narraram a arriscada travessia transatlântica e o desbravamento das novas terras, foram baseados na experiência e na observação de um sistema de elementos e signos, transcritos a partir dos mecanismos estruturais de uma narrativa de viagem. Resultado do contato imediato, o reconhecimento visual é o primeiro mecanismo de descrição. Elementos como a qualidade do ar, a abundância das terras, característica das águas, e os recursos alimentícios foram amplamente destacados.
O cronista português Pero de Magalhães Gândavo (1540-1580) em seu “Tratado da Terra do Brasil: Historia da Província de Santa Cruz, a que Vulgarmente Chamamos Brasil”, publicado pela primeira vez em 1576, tece sua descrição das terras brasílicas a partir da observação, destacando que “[...] san tantas e tam diversas as plantas, fuitas e hervas que há nesta Província de que se podiam notar mais particularidades, que seria cousa infinita escreve-las aqui todas, e dar noticia dos effectos de casa huma miudamente [...]” (GÂNDAVO, 2008, p. 39). De maneira similar, o senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa (1540-1591) escreve o “Tratado Descritivo do Brasil em 1587” também se atentando ao ambiente. Segundo o português “[...] esta baía é de bons ares, mui delgados e sadios, de muito frescas e delgadas águas, e mui abastada de mantimentos naturais da terra, de muita caça, e muitos e mui saborosos pescados e frutas [...]” (SOUSA, 1971, p. 141).
A partir do primeiro impacto com a flora e fauna americana, os sistemas de classificação e sistematização se moldaram nos relatos. De maneira individual, cada cronista organizou seus escritos seguindo sua própria lógica e preferência. Porém, mesmo sem o completo abandono dos paradigmas da Filosofia Natural, ocorreu no período o início do desmantelamento das antigas tradições (CERTEAU, 1994, p. 23). Como exemplo, a configuração da botânica medicinal respeitou os paradigmas da medicina hipocrática-galênica. Cada elemento foi registrado a partir de sua característica de acordo com seu temperamento descrito, em consonância com a teoria humoral. Mas já no final do século XVI, as novas percepções sobre o corpo, natureza e terapêuticas mudam sua forma e passaram a considerar as terras descobertas além-mar, suas gentes, e ofertas da natureza.
Essa relação é fortemente estabelecida pelo jesuíta espanhol Joseph de Acosta (1540-1600) em sua “Historia Natural y Moral de Las Indias”. Ao aventurar-se nas terras peruanas em 1571, Acosta (1894) formulou sua obra em sete partes, compreendendo as características climáticas da região, a fauna, flora, costumes dos grupos nativos, além de outros destaques para as viagens dentro do território. Ao considerar a relação dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo) com os humores corporais (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra) e o equilíbrio destes para a manutenção da saúde dos indivíduos (LE GOFF; TROUNG, 2005, p. 80), o cronista descreve o ambiente a partir dos ares e dos azares:
“Si algún Paraíso se puede decir en la tierra, es donde se goza un temple tan suave y apacible. Porque para la vida humana no hay cosa de igual pesadumbre y pena, como tener un Cielo y aire contrario, y pesado, y enfermo; ni hay cosa mas gustosa y apacible, que gozar de el Cielo y aire suave, sano, y alegre. [...] Este rodea nuestros cuerpos: éste nos entra en las mismas entrañas y cada momento visita el corazon, y así le imprime sus propriedades. Si es aire corrupto, entantico mata: si es salubre, repara las fuerzas; finalmente, solo el aire podemos decir que es toda la vida de los hombres. Así que aunque haya mas riquezas y bienes, si el Cielo es desabrido y mal sano, por fuerza se há de vivir vida penosa y disgustada. Mas si el aire y Cielo es saludabre, y alegre y apacible, aunque no haya de outra riqueza, da contento y placer” (ACOSTA, 1894, p. 162).
Dentro do sistema de elementos e classificação do Velho Mundo, a flora americana foi registrada a partir de sua compleição fitoterápica. As drogas americanas só foram reconhecidas, e posteriormente disseminadas na Europa, graças à utilização do conhecimento das culturas nativas. As aguçadas faculdades dos originais habitantes do Novo Mundo permitiram-lhes o registro de caracteres genéricos de todas as espécies de seres vivos, e de todos os fatores ambientais. A íntima integração dos grupos nativos com sua terra fez com que desvendassem o traiçoeiro hábito da flora de parecer semelhante e serem distintas, e de parecerem distintas e serem semelhantes (STRAUSS, 1968, p. 18-21). Dessa maneira, aproveitando de um saber e uso já determinado, os europeus sintetizaram esses elementos a partir de seus próprios dogmas, o que também representou uma ruptura do padrão estabelecido. Nesse processo, as tradições foram contestadas, os patriotismos desmistificados, regras, ritos e os velhos dogmas caíram no descrédito (CERTEAU, 1994, p. 23), progressivamente.
Como exemplo tem-se os registros sobre a Erva Petum. Descrita pelo francês André Thévet (1502-1590) na obra “As singularidades da França Antártica”, também é relatada por Jean de Léry (1536-1613) em sua “Viagem a Terra do Brasil”. A partir da observação dos moradores do Novo Mundo a planta é “[...] de grande estima entre os selvagens [...]” (LÉRY, 1961, p. 141). Fazendo o uso das similitudes, Thévet (1978) afirma que era semelhante às “língua-de-vaca”, já conhecidas na Europa, e seu uso assemelha-se ao descrito por Léry (1971) em que “[...] colhem-na e preparam em pequenas porções que secam em casa [...]” (LÉRY, 1971, p. 141). Thevet (1978) narra que “[...] depois de estar seca, envolvem uma certa quantidade dela numa folha de palmeira [...]”, posteriorente “[...] acendendo uma das pontas, aspiravam a fumaça pelo nariz e pela boca [...]” (THEVET, 1971, p.110), registrando as maneiras de usar o elemento.
Destinada para retirar os “humores supérfluos” do cérebro e “mitigar a fome” durante um grande intervalo de tempo, a descrição da erva corresponde ao que hoje se conhece pelo tabaco. A planta do gênero Nicotiana, encontrada por toda a América, foi amplamente disseminada através dos compêndios de medicina e de diferentes médicos, físicos, doutores e filósofos, que passaram a recomendar o uso da planta para diversas enfermidades, além de apostemas e úlceras (SANTOS; BRACHT; CONCEIÇÃO, 2013). Sua popularização no Velho Mundo não se vinculou com o significado xamânico, ritualístico ou de sociabilidade praticado pelos grupos do Novo Mundo. Os efeitos da nicotina, principal composto nitrogenado presente no tabaco, promovem uma sensação de bem-estar graças à liberação de dopamina, caindo no gosto do europeu e amplamente utilizado nos séculos posteriores.
A utilização do tabaco entre os nativos americanos, bem como outros elementos botânicos com propriedades curativas, remete à complexos simbolismos e práticas culturais exclusivas. De acordo com o historiador francês Michel de Certeau (1998), as maneiras de construção do fazer criam sistemas de estratificação e funcionamentos diferentes e interferentes, corroborando para a pluralidade. Na Europa do século XVI, diferentemente da sistematização nativa americana, as plantas medicinais dividiam-se de acordo com a sua ação curativa agindo sob as “quantidades elementares”; segundo a teoria humoral; e as que possuíam ações específicas. Dentro da Filosofia Natural os chamados “simples” correspondiam a qualquer medicamento que tinha em sua base de formulação algum elemento de origem vegetal ou animal. O tabaco entra no grupo dos simples desempenhando uma significativa adesão dentre a população europeia (SANTOS, 2003, p. 49).
Conclusão
Podendo ser picadas, amassadas, trituradas, extraídas seu óleo ou defumadas, as diversas folhas, raízes e troncos de plantas tropicais foram utilizadas de diferentes maneiras. Diante da falta de recursos conhecidos pelos europeus, a necessidade de ferramentas para reequilibrar os humores corporais, e a ordenação do mundo natural visando a exploração, a flora medicinal desempenhou um papel crucial nos paradigmas da Filosofia Natural e início da Medicina Moderna. De acordo com Michel Foucault (1999), a ordenação a partir de um sistema de elementos define os segmentos sobre os quais as semelhanças e diferenças se manifestam. Para o autor, as variações entre esses dois segmentos são indispensáveis para o estabelecimento da mais simples ordenação, “a ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei anterior” (FOUCAULT, 1999, p. XV).
O resgate aos documentos deixados por médicos, naturalistas, jesuítas, capitães e demais aventureiros, evidenciam a importância que as descobertas trouxeram no campo científico. Ao abandonar as concepções medievais de mundo, “ciência” e método, e iniciar o processo de ressignificação e remodelamento da Filosofia Natural, o estudo da botânica e sua inserção na Europa representou um passo para as teorias científica que posteriormente foram consolidadas, assim como no campo da biologia, farmacologia e medicina. A revisão desses antigos documentos possibilita uma abordagem interdisciplinar sobre o estudo da colonização; compreendem a Filosofia na construção do conhecimento; a História na análise sobre os desdobramentos das grandes navegações e chegada ao Novo Mundo; proporcionam o estímulo de atividades envolvendo a análise de documentos históricos, e ainda, permitem o desenvolvimento de “Temas Transversais”, como por exemplo, a História Ambiental.
Referências Biográficas
Mestranda Gabrielle Legnaghi de Almeida; Programa de Pós-Graduação em História (PPH); Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Doutoranda Anelisa Mota Gregoleti; Programa de Pós-Graduação em História (PPH); Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Fontes
ACOSTA, Joseph de. Historia Natural y Moral de Las Indias, Bde. Madrid [1590], 1894
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008.
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. [S.I.]: Biblioteca do Exército, 1961.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1971.
THEVET, André. As Singularidades da França Antártica. São Paulo: Ed. Itatiaia, 1978.
Referências Bibliográficas
BARRERA OSORIO, Antonio. Experiencing nature: the Spanish American empire and the early scientific revolution. Aunstin: University of Texas Press, 2006.
BRACHT, Fabiano; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos. A disseminação e uso de plantas do novo mundo no século XVI: A difusão de elementos da flora americana a partir da expansão marítima europeia. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. ANPUH, São Paulo, 2011.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 3. Ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.
CERTEAU, Michel de. La cultura en plural. Buenos Aires: Nueva Visión, 1994
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GRANT, Edward. História da filosofia natural: do mundo antigo ao século XIX. Madras, 2009.
LEE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Una historia del cuerpo en la Edad Media. Barcelona: Paidós, Ibérica, 2005.
SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano; CONCEICAO, Gisele Cristina da. Esta que "é uma das delícias, e mimos desta terra...": o uso indígena do tabaco (N. rustica e N. tabacum) nos relatos de cronistas, viajantes e filósofos naturais dos séculos XVI e XVII. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, p. 119-131, June 2013
SANTOS, Fernando Santiago dos. Os jesuítas, os indígenas e as plantas brasileiras: considerações preliminares sobre a tríaga brasílica. 2003.
LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1968.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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