Igor Meireles Bagdadi e Viviani Anaya

ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO - ANTES DA INVASÃO ATÉ O CICLO DO OURO (ENTRE 2001 E 2014)

  

O presente trabalho tem como propósito pontuar questões específicas encontradas nos livros didáticos analisados e que reforçam um racismo presente nas instituições educacionais, com foco na temática indígena, abordada no componente curricular da História. O objetivo da pesquisa é mostrar exemplos de racismo contido nos livros didáticos, adotados para o ensino médio, no período de 2001 a 2014, em espaços educacionais, em um recorte temporal histórico, antes da invasão européia até o chamado Ciclo do Ouro.

 

O crescimento da produção sobre a História do Brasil faz com que certos conteúdos escolares comecem a ser revistos, na tentativa de romper com o eurocentrismo encontrado em nosso contexto histórico e, consequentemente, didático. A História do Brasil sempre esteve atrelada a uma História Mundial; na maioria das pesquisas e construções históricas, a formação do Brasil contém uma visão exógena; poucas foram as vezes que grandes movimentos de pesquisadores tentaram construir uma história, do ponto de vista endógeno. Com a temática indígena podemos exemplificar essa tese: não raro, quando se aborda os povos originários nos livros didáticos, eles estão atrelados à história europeia, ao processo de “civilização” europeu. Vale lembrar que a abordagem rasa, sem o aprofundamento da história passada e atual dos povos indígenas e africanos, que tanto influenciaram na nossa construção social, maximizando a história europeia, seja na educação básica ou ensino superior, não é apresentar a História do Brasil para os estudantes e para o conhecimento da população, de forma crítica, mas reforçar um racismo educacional e acadêmico que se reflete na forma de pensar e agir nas futuras gerações.

 

Os livros didáticos, não raro, são vistos como balizadores do conhecimento sistematizado, portanto, utilizados como fonte de conhecimento e introdução de conceitos e valores, por professores e estudantes, dentro e fora do espaço escolar. Frise-se que a escolha do material didático a ser utilizado dentro e fora das salas de aula é uma escolha política e reflete preceitos e convicções, mesmo que não externadas ou verbalizadas. Por vezes, sem qualquer análise crítica sobre o conteúdo presente nos livros didáticos indicados, até porque, a escolha é hierárquica e verticalizada. Para além desse aspecto, poucos materiais complementares que apresentem visão diferenciada são adotados, até para abrir margem para o contraditório, tão importante e fundamental quando se pensa em formar uma massa crítica, autônoma e reflexiva.

 

Muitos professores de História tendem a criticar o livro didático, principalmente por mostrar um lado tendencioso, validando as ações dos “vencedores”, excluindo os “perdedores” ou tratando-os como inferiores (BITTENCOURT, 2018). Neste diapasão, muitos professores de História evitam ao máximo utilizar esses materiais, ou utilizam com muita desconfiança, todavia, as diferentes visões contidas nos materiais didáticos precisam ser contempladas e discutidas, entendendo a importância do livro didático como mediador do conhecimento, além de ajudar o professor na montagem da aula, bem como o aluno durante os seus estudos.

 

A temática indígena, abordada nos livros didáticos, objeto da pesquisa e constantes do referencial bibliográfico, traz um número razoável de análise, ainda pequeno se comparado a outras temáticas, mas demonstram nossa preocupação com as visões preconceituosas, enraizadas socialmente, e que fazem parte integrante desses livros, subtraindo dos estudantes a capacidade de entender como os povos originários se organizavam social e culturalmente. Todavia, nossa crítica funda-se na ausência de conteúdo sobre esses povos, datando sua “aparição” somente com a chegada dos europeus, ou contendo, somente, uma breve explicação de como se organizavam antes do “descobrimento”, em 1500. A partir daí, toda a discussão funda-se em uma visão eurocêntrica. Ideologicamente, parece-nos que os povos originários passam por um marco temporal onde só existem até a presença dos povos africanos no território e só voltam a existir quando, convenientemente, aborda-se conteúdos envolvendo os Bandeirantes e os aldeamentos, mais uma vez, contendo visões eurocêntricas.

 

De 2001 a 2014, passando pela lei 11.645/2008, que obriga o ensino da cultura indígena, percebe-se algumas mudanças, sobretudo, com a aparição mais detalhada dos povos, menos estereótipos, livros que se contradizem, todavia, alguns preceitos se perpetuam, como frases e parágrafos idênticos em diferentes livros e edições, defendendo a hegemonia de um processo violento contra os povos, mostrado e comprovado a partir da análise de livros didáticos da Editora Scipione.

 

Na tentativa de abordar fatos históricos dentro da pesquisa sobre ensino de história nos livros didáticos, a pesquisa inicia a análise falando sobre como os humanos chegaram no continente que hoje conhecemos como América, mostrando que existem vestígios que variam entre 15mil e 100mil anos atrás, vindos pela Ásia, Austrália e Malaio-polinésia, ou seja, pelo Oeste nas correntes marítimas e pelo estreito de Bering. Abordamos, também, a chegada desses povos no Brasil, a partir de três caminhos mais aceitáveis: pela Amazônia, pelos Andes ou contornando o litoral. Essa análise passa por todos os livros analisados, todavia, sem explicar de onde vieram.

 

O próximo período histórico abordado é a chegada dos europeus na atual América. Nesse momento, principalmente nos livros mais antigos analisados, é evidenciada a relação das palavras, com a utilização de “descoberta” e “novo”, em relação ao novo mundo, por exemplo e, para outros continentes já conhecidos pelos europeus, utilizar-se a palavra “chegada”. Evidenciamos, também, a falta de informações sobre esse momento em todos os livros analisados, não contendo nenhum aprofundamento sobre a chegada dos europeus, saltando, diretamente, para as questões comerciais.

 

Na discussão sobre o comércio, encontramos a questão do escambo como uma troca injusta onde os portugueses foram mais “espertos”, ignorando então diversos documentos históricos que mostram que a relação de troca era mútua, além da crítica ao discurso no livro didático que, indiretamente, estaria ligado à questão do “índio preguiçoso”.

 

Durante a efetiva colonização do território, os livros analisados, no que tange ao início da História do Brasil, deixam de lado a história dos povos indígenas e focam somente na questão europeia e, na sequência, no processo de escravidão dos povos africanos. Percebe-se a mesma lógica quando se fala da interiorização da colonização; há pouca ou nenhuma informação sobre a questão indígena, mesmo sendo a coleta das chamadas Drogas do Sertão, feita em grande escala, por trabalho escravo indígena.

 

Há um momento da pesquisa com um enfoque para três questões prioritárias na história dos povos indígenas presentes no território brasileiro, sendo elas a chamada “Conquista do Sul”, os aldeamentos religiosos e, por fim, os Bandeirantes. Seja pela falta de informações ou por maximizar aspectos europeus, os livros didáticos trazem pouca informação sobre as questões indígenas, sobretudo, nestes três momentos evidenciados, considerados extremamente importantes, quando se discute questões indígenas.

 

Somente na análise dos livros didáticos mais antigos, no conteúdo “Conquista do Sul” cita-se a Guerra Guaranítica, mesmo assim, de forma rasa e superficial, sem detalhes sobre a resistência dos povos indígenas da região. Quanto mais próximo de 2014, menos informações sobre essa resistência é encontrada nesses materiais didáticos. Há uma abordagem excessiva sobre as relações de Portugal e Espanha e a briga pela região, excluindo, totalmente, os povos nativos.

 

Quando se discute os aldeamentos, os discursos ficam bem tensos em relação aos povos originários; em geral, os jesuítas são vistos como salvadores dos nativos, vindos para a Terra Brasilis com a função de protegê-los dos colonos. Geralmente, essa questão é abordada como complementar a outras e não como uma parte exclusiva para falar do domínio religioso sobre outros povos. Além da questão do jesuíta salvador e protetor, tanto os livros mais antigos quanto os mais novos analisados, abordam a aculturação, tratando-os como pessoas que, após aldeadas, perderam sua cultura, levantando hipóteses, como detectado em alguns livros, que os grandes responsáveis pela cultura brasileira são os jesuítas. Ainda sobre a aculturação, o indígena só volta a ser indígena quando necessário. Quando isso não acontece, ele não é mais indígena pois segundo os livros, ele não tem mais essa cultura. Esse discurso é bastante perigoso e mesmo no último livro didático analisado, a ideia de que só se pode ser considerado povo nativo se morar na floresta e andar nu, sobrevivendo somente do que a natureza pode fornecer dar como matéria prima, ainda é muito enraizada.

 

É sempre importante ressaltar, quando se abordar os aldeamentos, que quando um povo escolhia se permitir o aldeamento, era a escolha de um mal menor, ou seja, ou eles seriam caçados pelos colonos pela vida inteira até serem dizimados, assassinados, estuprados e escravizados, ou aceitavam serem aldeados; terem parte da sua cultura proibida, não quer dizer que não a praticavam, mesmo com trabalhos análogos à escravidão. Ainda nessa parte da pesquisa, é destacada algumas revoltas que ocorreram nesse contexto e os massacres de alguns povos indígenas.

 

Quando os livros analisados abordam os bandeirantes, diferentemente dos jesuítas, eles não são vistos nos livros didáticos como salvadores dos povos indígenas, porém, são postos como heróis nacionais, os grandes expansionistas, que interiorizaram o território. Os livros pouco abordam os povos indígenas, a luta, segundo eles, entre jesuítas e bandeirantes. Somente o último livro analisado cita a resistência do povo Kayapó, mas não a colocam como resistência, mas como bandidos que saqueavam os bandeirantes que passavam pelas suas terras. Ainda no último livro, é citada a Confederação dos Cariri, porém, tratam os filhos das mulheres indígenas estupradas como não indígenas, por serem mestiços. Ainda, segundo os autores do livro, uma nova cultura e civilização é criada em função desses filhos mestiços, defendendo que a miscigenação, mesmo que forçada, acaba com culturas já existentes e valida o discurso de que indígenas mestiços, atualmente, não podem ser considerados indígenas “verdadeiros”. Finalizando a discussão sobre os bandeirantes, foi possível encontrar em todos os livros analisados, exceto os de 2001 e 2005, o mesmo discurso considerando os bandeirantes heróis nacionais, apesar dos massacres promovidos por eles, não evidenciados como tal.

 

A pesquisa aborda, também, a falta de representatividade de personagens indígenas; os que são abordados, normalmente são aqueles que, por questões individuais ou por pressão dos colonizadores, decidiram ficar do lado dos europeus, diminuindo, então, os personagens que morreram na resistência contra os europeus. Enquanto os livros dão nomes de diversos europeus e colonos que passaram por aqui, personagens pertencentes a povos nativos que marcaram a nossa história ficam apagados do conhecimento popular. Outro elemento a evidenciar é a ausência de diversidade dos povos; enquanto é mencionado várias nações europeias e suas disputas, pouco se fala dos povos e suas resistências contra a colonização. Por fim, criticamos a abordagem dos livros didáticos com a temática indígena como se fosse uma era histórica, um marco temporal, Idade Média ou a crise do século XIV na Europa, algo datado, que aconteceu e, posteriormente, deixou de acontecer em um determinado momento. Os povos indígenas continuaram e continuam a ser massacrados, excluídos e negligenciados.

 

Por fim, a pesquisa entra na análise dos exercícios propostos pelos livros, visto que não há grande diferença entre os livros didáticos analisados antes e depois da lei n° 11645/08. Também foram analisadas as fontes utilizadas para compor os livros. Constatamos uma maior quantidade de fontes sobre a abordagem indígena nos livros mais antigos, porém, muitas fontes são clássicos ou pesquisas que datam da primeira metade do século passado, portanto, ainda carregadas de estereótipos que já poderiam ter sido eliminados, além de utilizar muitas pesquisas feitas por europeus, reforçando ideias ideologicamente defendidas, que não deveriam estar em livros didáticos. Quando vamos para a análise dos livros mais atuais, encontramos menos quantidade de fontes, porém, elas são bem mais contemporâneas do que as utilizadas nos livros mais antigos. Contudo, essas fontes são bem generalizantes, ou dão enfoque aos personagens colonizadores como os bandeirantes. Por fim, podemos verificar um padrão nos autores que escreveram os livros didáticos: quase sempre eles escreveram todos os materiais analisados; alguns, sem formação em História, mas Bacharelado em Ciências Sociais, ou com formação em História, porém, nenhuma especialização na temática indígena. Podemos inferir que o discurso é replicado, com algumas variações e nuances.

 

Na conclusão, além de uma crítica a uma educação colonial, advinda dos jesuítas e, posteriormente, a uma educação liberal, reforçamos a necessidade de uma educação anti colonial, endógena e que seja voltada para a formação de um cidadão crítico, autônomo e reflexivo, a partir de diferentes fontes de análise, abrindo espaço para o debate acadêmico, tão necessário para essa formação. Acrescentamos, ainda, uma proposta de material de apoio pedagógico, que poderia se converter em uma possibilidade real e concreta para quebrarmos paradigmas sedimentados sobre a história dos povos originários nos livros didáticos.

 

Referências biográficas

 

Igor Meireles Bagdadi, estudante do curso de História, Universidade Veiga de Almeida

 

Dra. Viviani Anaya, professora dos cursos de Licenciatura, Universidade Veiga de Almeida 

 

Referências bibliográficas:

 

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: Fundamentos e Métodos. 5 ed, São Paulo: Cortez, 2018. 

 

BRASIL. Lei n° 11.645, de 10 março de 2008. Brasília: MEC, 2008.

 

COSTA, Luís César Amad; MELLO, Leonel Itaussu A. História Geral e do Brasil: da Pré-história ao século XXI. São Paulo: Scipione, 2008.

 

DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio. História para o Ensino Médio: História Geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, Série Parâmetros, 2007.

 

DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio. História para o Ensino Médio: História Geral e do Brasil. 2 ed, São Paulo: Scipione, Série Parâmetros, 2005

 

DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio. História Geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2010.

 

DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio; VICENTINO, José. História: Parte 1. São Paulo: Scipione, 2014.

 

DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio; VICENTINO, José. História: Parte 2. São Paulo: Scipione, 2014.

6 comentários:

  1. Tácio Ferreira Garrido Barbosa27 de maio de 2021 às 17:36

    Boa tarde! Nas opinião de vocês, que medidas os professores deveriam tomar para mediar essa problemática de esquecimento dos personagens e cultura indígena no cotidiano escolar?

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    1. Igor Meireles Bagdadi28 de maio de 2021 às 17:19

      Boa tarde, é uma pergunta difícil de responder, não só por ter algumas coisas a serem feitas como também por a maioria delas não serem aceitáveis na maioria dos corpos docentes. Infelizmente a mudança curricular é um "campo de guerra" nas escolas, mas ao menos em História, talvez ao inserirmos esses personagens nas linhas históricas já é um bom início. Personagens indígenas estão presentes na nossa história antes da colonização até atualmente e em todos os séculos e décadas eles fizeram resistência, temos que conhecê-los e por eles dentro de sala.

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  2. Parabenizo aos escritores, Igor e Viviani. Excelente dissertação da temática.
    Uma vez que a problemática nos livros didáticos foi identificada, de que maneira transpor esses dogmas e promover um ensino pós-colonial?

    Att, Talytha Cardozo Angelo.

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    1. Igor Meireles Bagdadi28 de maio de 2021 às 17:37

      Boa tarde Talyta, a mudança do conteúdo do livro didático é muito sensível, não é só um debate em nível institucional mas também como governamental, porém acredito que o primeiro passo seja um livro didático multidisciplinar, pois, não é possível ter uma educação que vá contra o colonialismo em uma matéria e outra estar ainda no caminhos das correntes colônias.

      Acredito que ainda não temos uma resposta definitiva para essa questão dos livros didáticos, mas acredito que um primeiro passo esteja presente em outro artigo também escrito por mim, por Viviani e um outro pesquisador.

      Pode encontrar esse artigo na Revista Tecnologias na Educação- Ano 12 -Vol.34- Dezembro/2020, o artigo número 7 nominado como "Educação 4.0, material didático e a temática indígena: elos articuladores"

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  3. Boa tarde! Aos autores, Igor e Viviani, parabéns pela escrita. O texto promove ótimas reflexões acerca da substituição de terminologias ultrapassadas e racistas, bem como uma abordagem necessária e diferente da que encontramos hoje em salas de aula, porém, tenho um questionamento. Existe algum tipo de avanço perceptível, por mínimo que seja, se ao menos tivéssemos trocado algumas terminologias racistas encontradas em livros didáticos por termos corretos?

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    1. Igor Meireles Bagdadi28 de maio de 2021 às 17:29

      Boa tarde Luiz, somente a troca de termos racistas não será suficiente obviamente, palavras não racistas podem levar nossos pensamentos para o racismo, como botar o indígena no local do passado ao ensinar ele somente no passado, isso é um ato racista mas não necessariamente precisa ser utilizado termos racistas para tal ação. Porém é necessário fazer toda uma reestruturação no ensino da temática indígena, e nessa reestruturação entram não só o conteúdo e a forma de ensinar como também a mudança dos termos como índio e tribo, e muitos outros termos presentes na nossa sociedade.

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