Patrícia Martins Alves do Prado

AIRTON KRENAK:  UMA NARRATIVA INDÍGENA DO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DO BRASIL

 

O presente estudo trata-se de uma leitura do primeiro episódio de Guerras da Conquista da série Guerras do Brasil.doc dirigido por Luiz Bolognesi com patrocínio da Agência Nacional de Cinema, o documentário apresenta e problematiza a narrativa eurocentrada de conquista colonial, que contribuiu para a construção do mito fundacional do Brasil.  Este ensaio foi apresentado no curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Formação de Professores e Práticas Educativas, do Instituto Federal Goiano Campus Ceres, para obtenção parcial da nota na disciplina Cultura, Diversidade e Educação.  O episódio conta com a participação de duas lideranças indígenas, Sônia Guajajara e o historiador e filósofo indígena Airton, liderança da etnia Krenak. O episódio coloca em evidência as práticas de extermínio das etnias indígenas, o processo de dominação, a evangelização impostos pela colonização portuguesa.   O episódio registra ainda a participação de estudiosos da temática indígena  tais como Airton Krenak, Carlos Fausto, Sônia Guajajara, João Pacheco de Oliveira, Pedro Luiz Puntoni que apontam para a construção de estereótipos pelo olhar etnocêntrico do colonizador que em diferentes momentos históricos inferiorizou e homogeneizou as múltiplas culturas das etnias indígenas que ancestralmente já conviviam no país.

 

O episódio Guerras da conquista do documentário, traz a visão indígena através da fala de Airton Krenak que questiona a versão da história oficial do Brasil, tem-se travada uma disputa pela memória e pelo respeito a diversidade e subjetividades indígenas na contemporaneidade. Segundo Airton Krenak disseminou-se desde o processo de colonização do país, múltiplas invasões numa dinâmica que ainda não teve fim, permanece o conflito e enfrentamento das várias etnias indígenas pelo território, pela defesa do dos valores culturais e do meio ambiente, Sônia Guajajara coloca que atualmente a luta e resistência continua contra garimpeiros, latifundiários e madeireiros. 

 

A representatividade e participação política de lideranças indígenas são relevantes porque “os indígenas estão deixando a condição de subalternos quando passam a falar por eles mesmos, sem necessidade de intermediadores para lhes representar e lutar pelos seus direitos, assumindo o protagonismo de suas próprias histórias.” (BICALHO; SILVA,2018, p.250) 

 

Neste sentido, a narrativa decolonial de Airton Krenak ao se posicionar em relação da invenção do Brasil coloca em xeque mate a ideia da descoberta do Brasil, posto já havia nas Américas civilizações pré-colombianas, gente com histórias milenares.  Krenak conta que os povos: 

 

“guaranis já viviam aqui a mais de quatro mil anos, e tinham compreensão de si enquanto povos e relacionava com os povos andinos, e que reivindicavam diante dos andinos uma territorialidade e um respeito pelos povos andinos deste território. Que é uma parábola dessa parte que vem lá do que seria o pantanal passando por parte do que e o Mato Grosso no noroeste paulista atravessando o Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul pegando uma parábola desses territórios que formam uma cosmogonia onde os guaranis circulam caminhando em busca dessa tal de terra sem males, uma cosmovisão guarani que busca um lugar que é um espelho da terra, mas que não tem todos os defeitos daqui da terra, e um lugar melhor que a terra, que é a terra sem males. (KRENAK, In BOLOGNESI, 2018)”

 

Na cosmogonia Guaranis havia uma busca pela terra sem males, os índios não conheciam a ideologia pautada nas relações econômicas e sociais fundamentadas na perspectiva de lucro e da dominação. Os guaranis buscam por um modo de vida como a fala de Krenak relata fundamentada no respeito a subjetividades indígenas e de sua territorialidade. Segundo Krenak os brancos que chegaram aqui, poderiam ter vivido como mais um na diferença. Brah esclarece que:

 

“(...) a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agencia política. (Brah, 2006:374)”

 

Os povos indígenas já conviviam com o reconhecimento da diferença. Entretanto, essa forma de relacionar com o “Outro”, foi alterada após a chegada dos europeus a nova terra, pois se lembrarmos bem o processo de colonização já estava programado no tratado de Tordesilhas.   De acordo com as autoras Bicalho; Silva:

 

“O movimento decolonial não se baseia apenas em suprimir o processo colonial de nossa história, não se trata apenas de descolonizar os territórios colonizados, mas assumir uma postura de luta contínua para escrever uma nova história dos colonizados como atores sociais partícipes do processo, e não como simples agentes moldáveis, submissos e subordinados. A decolonialidade refere-se ao processo que busca transcender historicamente a colonialidade e supõe um projeto mais profundo, uma tarefa urgente de subversão do padrão de poder colonial no presente tendo em vista o futuro. (BICALHO; SILVA,2018, p.250)”

 

Desta forma, as estratégias de releitura e reescrita da história a partir das narrativas silenciadas ao longo da história e historiografia brasileira almejam o reconhecimento e valorização da identidade cultural dos povos indígenas, dos negros afro-brasileiros. É de fundamental importância vislumbrarmos que cada povo vive sua própria cultura de forma singular e é por este motivo que o confronto com a alteridade pode simultaneamente culminar em crises que estimulam a violência muito além da simbólica o que Said (2007) evoca como sendo choque de civilizações e/ou por outro lado pode estabelecer um diálogo cultural enriquecedor.  Além disso, temos que levar em consideração:

 

“(...) que o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas teias e a sua análise: portanto não como ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (...) (GEERTZ, 1978:15)”

 

Assim, cultura é o que proporciona sentido às práticas sociais, portanto, propicia que venhamos a compartilharmos valores em comum e simultaneamente interiorizando-os e vivenciando-os de forma diversificada e única.  Portanto, a dinâmica cultural atua em todas as dimensões da experiência humana, e justamente por isso as identidades só podem ser pensadas e (re) construídas no interior da dinâmica cultural, e são as formas como lidamos com as diferenças que desencadeia as crises.De acordo com Stuart Hall (2001), a identidade torna-se uma questão quando entra em crise. Tal crise simboliza um amplo processo de mudanças e forças que emergem no processo da globalização que abalou as estruturas do mundo moderno. Stuart Hall se posiciona com simpatia ao deslocamento das identidades assevera "... que as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas."(HALL,2001:08) Desta forma, a crise da identidade defendida por Hall questiona a pretensa superioridade da cultura ocidental imperialista, pois com o deslocamento das velhas identidades abre-se a possibilidade para a emergência de novas identidades que foram silenciadas, colonizadas e posicionadas nas margens.

 

E este processo de valorização da narrativa do índio, do negro na formação da população brasileira sem ter sua identidade e saberes assimilados, silenciados ou apagados na identidade cultural brasileira, que é uma contribuição fundamental para o desenvolvimento de uma educação antirracista que desdobre em relações sociais promotoras da justiça e cidadania no Brasil. Por repensar as culturas de modo mais dinâmico e aberto ao diálogo intercultural, pode reelaborar o imaginário brasileiro, o que colabora com a construção de referenciais para a formação de representações sociais das etnias que convivem dentro do Estado brasileiro conduzam a uma forma de conviver que combata os preconceitos, racismo, etnocentrismos.  

 

Este fator contribui para a desconstrução do imaginário dos índios estarem congelados no passado colonial, pois a “...maioria da população brasileira ainda pensa que as 255 etnias indígenas sobreviventes no território nacional, segundo dados do Instituto Socioambiental, possuem as mesmas características e são apenas ‘índios’, termo apreendido de forma genérica.” (BICALHO; SILVA,2018, p.246)

 

Na visão de Krenak (2018) todo indivíduo que se identificar ainda hoje como “continuidade colonialista que chegou aqui, você, seu pai, seu avô, bisavô são ladrões”. Neste sentido, “a subversão do padrão de poder colonial” tem como horizonte de expectativas novas formas de representações sociais que não sejam balizadas como uma continuidade colonialista. 

 

As culturas têm histórias, memórias materializam atos simbólicos num tempo e espaço geográfico, são dinâmicas por isso sujeitas a mudança com o passar do tempo reinventando-se, podem favorecer trocas culturais enriquecedoras, produtoras de traduções culturais e resistências, assim evocam referências positivas para reelaboração da identidade seja pessoal, profissional ou comunitária. Como também podem contribuir para a manutenção de essencialismos e relações etnocêntricas, xenofóbicas e de nacionalismos exacerbados contra aqueles que portam marcadores da diferença e difusão de processos de exclusão.

 

As pessoas marginalizadas têm a possibilidade de questionar, problematizar este discurso de superioridade, não legitimando o preconceito e discriminação impostos, mas pelo contrário fomentam a luta e reivindicação do respeito à uma representação de sua identidade e autonomia estabelecida por via da efetivação do direito a relações sociais justa e equitativas. 

 

É o que têm feito os movimentos sociais, culminando em conquistas como a lei 11.645/08 que determina a valorização da cultura negra e indígena na formação da sociedade brasileira. Afinal como assevera Hall: “(...) O único jogo corrente que vale a pena jogar é o jogo das guerras de posição culturais.” (HALL, 2003: 339).    

 

O genocídio e a guerra como situação permanente como vimos no episódio, não deveria ser a única alternativa para os povos originários na atualidade, posto que conforme Stuart Hall cogita a identidade não é uma construção fixa. Mas sim, uma “celebração móvel” porque é perpassada pela dinâmica cultural e pela ressignificação das memórias.

 

Por isso, as reivindicações políticas tensionam o Estado brasileiro a produzir políticas públicas que subvertam a lógica de poder colonial e salde a dívida histórica com os povos subalternizados. O Estado é tensionado pela atuação política das minorias sociológicas a reconhecer a contribuição destes povos na formação da sociedade e cultura brasileira. Há todo um movimento de luta indígena das diversas nações que se relacionam no bojo da cultura nacional brasileira pela defesa do direito à diferença, por seu território, por seus valores culturais e pelos direitos sociais dos povos. 

 

O docente tendo a Base Nacional Comum Curricular como instrumento para o planejamento de aula poderá na unidade temática A invenção do mundo clássico e o contraponto com outras sociedades, nos objetos de conhecimento os povos indígenas originários do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais, com a possibilidade de trabalhar as habilidades: (EF06HI08) Identificar os espaços territoriais ocupados e os aportes culturais, científicos, sociais econômicos dos astecas, maias e incas e dos povos indígenas de diversas regiões brasileiras.

 

Tendo em vista a relevância de conhecer e valorizar o patrimônio cultural material e imaterial das culturas ancestrais de diversos povos indígenas do Brasil.  Que deixaram um importante legado cultural. Deixo como sugestão de proposta pedagógica a atividade para os alunos do 6 º ano do Ensino Fundamental a produção de vídeos de até cinco minutos sobre uma das culturas e etnias indígenas próximas a sua região geográfica. Ou ainda que o vídeo seja produzido a partir do posicionamento dos estudantes tendo como fontes de pesquisas para o aprofundamento do tema a oportunidade de assistir em casa os documentários: Índios no Brasil. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=ScaUURAJkC0   e o primeiro episódio de Guerras da Conquista da série Guerras do Brasil.doc:  https://www.youtube.com/watch?v=VeMlSgnVDZ4   

 

Referências biográficas:

 

Patrícia Martins Alves do Prado é Especialista em História Cultural: Imaginário, Identidades e Narrativas e História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, ambas especializações pela UFG. Graduada em Licenciatura Plena em História pela UEG. Discente do curso de Licenciatura em Pedagogia pela UEG / CEAR – Polo de Uruana e Especialização em Formação para Professores e Práticas Educativas pelo Instituto Federal Goiano – Campus Ceres.  E-mail: patriciaprado31@gmail.com

 

Referências bibliográficas

 

BOLOGNESI, L. As Guerras da Conquista in. Guerras do Brasil.doc. Netflix, 26 min. SP, 2018. Disponível em:<< https://www.youtube.com/watch?v=VeMlSgnVDZ4 >> Acessado em: 21/08/2020 às 20:00

 

BRAH, Avtar. Difference, Diversity, Differentiation. In: Cartographies of Diáspora: Contesting Indentities. Longon/New York, Routledge, 1996, capítulo 5, p.95-127. Tradução brasileira: “Diferença, Diversidade, Diferenciação”, Cadernos Pagu (26), jan/jun de 2006, p.329-376.       

 

GEERTZ, Clifford. A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar 1978. 

 

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de janeiro. DP & A. 2001.

 

SILVA, Keyde Taisa da; BICALHO, Poliene Soares dos Santos. Uma abordagem decolonial da história e da cultura indígena: entre silenciamentos e protagonismos. Crítica Cultural – Critic, Palhoça, SC, v. 13, n. 2, p. 245-254, jul./dez. 2018. 

9 comentários:

  1. Patrícia Martins Alves do Prado
    Boa noite
    O processo de identidade da etnia negra e indígena, marca questões problemáticas que foram criadas pelo mundo dos homens brancos. Que políticas públicas podem ser inseridas para ajudar essas pessoas???

    ResponderExcluir
  2. Patrícia Martins Alves do Prado
    Boa noite
    O processo de identidade da etnia negra e indígena, marca questões problemáticas que foram criadas pelo mundo dos homens brancos. Que políticas públicas podem ser inseridas para ajudar essas pessoas???
    OLEANE AMANCIO DE OLIVEIRA

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pela reflexão Patrícia.
    Pensando nas possibilidades para o trabalho com a perspectiva decolonial no ensino de História, ou até mesmo com o uso do documentário citado que conta com as narrativas de importantes lideranças indígenas do nosso país, qual sua opinião sobre o trabalho da temática em sala de aula com a implementação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular)? No texto você cita uma das possibilidades de trabalho a partir do documento. Mas, pensando na organização da base (constituída majoritariamente a partir de uma perspectiva eurocêntrica da História), você acha que a Base dificultou a possibilidade de trabalhar, por exemplo, com as narrativas ou perspectivas indígenas em sala de aula?

    Mariana de Sá Gaspar

    ResponderExcluir
  4. Gleidson Fernando Rocha dos Santos26 de maio de 2021 às 22:12

    O documentário Guerras da Conquista da série Guerras do Brasil.doc realmente é muito bom. Recentemente foi lançado o livro que comprei e ainda não li. Bem, sou de Belém do Pará, uma região com grande peso indígena, ancestralidade que pode ser vista no rosto das pessoas, apesar disso, lá podemos ver também o processo de apagamento da cultura indígena. Como você debate no texto a identidade indígena não é estática, mas para embranquecer o povo só se recolhece como indígena aquele que está "tribalizado", mas o branco não deixa de ser branco se ele virar hippie e for morar no meio do mato, então você acha que o indígena que vai para a cidade deixa de ser indígena?

    ResponderExcluir
  5. Primeiramente, parabéns pelo trabalho e por pensar a questão do ensino para além do espaço escolar. Para você de que forma o documentário permite romper com a visão euocêntrica acerca do papel dos indígenas na História do Brasil?

    ResponderExcluir
  6. Patrícia Martins Alves Prado, gostei muito da reflexão, parabéns pelo trabalho. Gostaria de saber qual a importância do historiador Airton Krenak em todo esse processo?

    Maria Taislane de Carvalho
    Graduanda em Direito pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI

    ResponderExcluir
  7. Olá, Patrícia!

    Que bom ler o seu trabalho e entender mais sobre todas as vozes de grande referência na temática indígena no Brasil tem a nos ensinar e a nos fazer abrir os olhos. Já tinha visto o episódio da série, mas não tinha conhecimento do documentário "Índios no Brasil" que você indicou aqui. Certamente irei assisti-lo assim que possível.

    Sobre a questão envolvendo o movimento de decolonialidade que você cita no corpo do texto, gostaria de saber quando foi seu primeiro contato com o conceito e como faz uso dele na práxis, na relação diária em sala de aula. Quais as ferramentas utilizadas por você para iniciar essa discussão no ambiente escolar? Geralmente realiza introdução através de produções midiáticas como a série e o documentário para assim familiarizar os alunos e alunas?

    Att,
    Luna Silva de Carvalho.

    ResponderExcluir
  8. Primeiramente gostaria de parabenizar a Patrícia pelo estudo. O documentário se caracteriza perfeitamente como uma opção de material didático que pode ser trabalhado no ensino de História do ensino básico, inclusive fazendo valer a Lei 11645 de 2008, que infelizmente, atualmente se limita a comemorações duvidosas do 19 de abril. Gostaria de saber da discente se ela produziu ou pretende produzir outros conteúdos para além dessa comunicação aqui exposta e se pode deixar contato para que possamos ter acesso à sua produção, caso a resposta seja positiva. Parabéns Patrícia... excelente trabalho.

    Assino: RANNE CÁSSIA MIRANDA
    Assistente Social e Graduanda em História pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro

    ResponderExcluir
  9. Olá , gostaria de parabenizar você pelo excelente texto ,na sua opinião, é possível reverter essa narrativa eurocêntrica que se tem da história indígena, ainda mais no momento em que se vive o Pais?
    Igor Moreira

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.